Quando eu tinha 10 anos, gostava de imaginar que era o Demolidor. Era meu personagem favorito. Mas, nas minhas brincadeiras, eu não era cego. Eu não entendia como alguém com uma deficiência poderia ser um super-herói, mesmo que tivesse poderes que a compensassem. Eu era o Demolidor, mas eu enxergava.
Naquela sexta-feira, eu estava sozinho mais uma vez no pátio da escola e era o Demolidor, percorrendo os corredores da cidade, defendendo os fracos e oprimidos. Sei que era uma sexta-feira, porque os garotos da minha turma tinham ido jogar futebol. Eu não jogava com eles. Eu nem sequer falava com eles, nem com ninguém das outras classes. Na maior parte do tempo, eu desejava que todos estivessem mortos.
O estacionamento dos professores ficava nos fundos. Eu estava caminhando até lá, quando ouvi alguma coisa. Encurtei os passos e me escondi atrás de uma pilastra para observar. Só havia o carro do diretor. Ao lado dele, o filho do zelador estava brincando com uma velha bola de couro, chutando-a na parede.
Eu já o tinha visto algumas vezes, andando ao lado do pai e ajudando nos serviços. Alguns alunos falavam dele. Chamavam ele de porco. Era um menino gordo, da minha idade, com um cabelo loiro crespo e que sofria de lábio leporino. Tanto ele quanto seu pai se limitavam ao trabalho e quase nunca ficavam à nossa vista. Eu nunca tinha visto o menino sozinho, até então.
De repente a bola passou por entre as suas pernas e foi parar embaixo do carro. Aí ele levantou a parte dianteira do veículo, como se fosse uma caixa de papelão, e arrastou a bola para o lado com o pé. O alarme disparou. Ele soltou o carro, pegou a bola e saiu correndo. Eu permaneci imóvel, incrédulo com o que tinha acabado de ver.
Por causa do barulho ensurdecedor, não notei quando alguém chegou por trás de mim. Senti a mão do zelador no meu ombro e, na mesma hora, percebi que seria levado à direção do colégio e culpado por ter mexido no carro. Normalmente, eu ficaria apavorado com isso, mas naquela hora nada daquilo importava.
O diretor era um sujeito extremamente magro e calvo. Sempre de terno preto e óculos gigantescos. Eu estava na sala de espera, quando a porta se abriu e o filho dele saiu de lá. Não lembro o nome dele. Ele era o fodão da escola e se aproveitava do cargo do pai para se impor. Ele devia ter uns 13 anos anos na época. Era da última turma. Naquela escola só havia o primeiro grau.
Minha mochila estava no chão. Ele cuspiu nela, sorriu pra mim e disse alguma coisa. Eu não respondi, virei o rosto, eu tinha muito medo dele. Fiquei olhando para o lado, até ter certeza de que tinha ido embora. Meu coração estava disparado e eu senti ódio e vergonha. A secretária apareceu e me mandou entrar.
O diretor estava em sua mesa, me olhando por cima dos óculos. Ele me detestava, mas sabia quem era o meu pai. Eu, que ainda era uma criança na época, já sabia que homens como o diretor temem homens como o meu pai.
– O que estava fazendo no estacionamento, Rodolfo? – ele perguntou.
– Nada, senhor. Estava só olhando, senhor.
– E por quê mexeu no meu carro?
– Não mexi, senhor. O alarme disparou sozinho, senhor.
Ele respirou fundo e então me entregou uma folha de papel.
– Isso é para o seu pai. O seu motorista já chegou, você pode ir.
– Sim, senhor. Obrigado, senhor.
Li o bilhete no caminho para casa: “Doutor Armando, seu filho foi chamado á minha sala, por se comportar mal. Peço que entre em contato com a diretoria da escola para maiores esclarecimentos.”
Meu pai nunca recebeu aquele bilhete. Eu joguei fora da mesma forma que havia jogado todos os outros. Ele nunca se importava com o que acontecia comigo na escola e eu também não contava para que não tivesse vergonha de mim. Era o melhor colégio para garotos da cidade, só os ricaços estudavam lá. Eu fazia minha parte, tirava notas boas e ele ficava satisfeito quando eu passava de ano. O diretor também nunca cobrava respostas aos bilhetes que mandava. Ele sabia quem era o meu pai.
A semana seguinte transcorreu de maneira natural. Eu passava os dias sem falar com ninguém e, vez por outra, alguém ria ou dizia alguma coisa quando cruzava comigo. Isso eu tirava de letra, mas às vezes o filho do diretor me abordava. Seu cabelo extremamente loiro, quase branco. Era como um vilão de histórias em quadrinhos. Usávamos terno naquela escola. Eu dia ele me segurou pela gravata e me abaixou até o chão. Os outros garotos riram, ele gostava de plateia. Eu nunca reagia, tentava apenas não chorar na frente dos outros, mas nem sempre conseguia.
Então, eu decidi que aquilo teria que terminar. Na sexta, eu sempre ficava sozinho. Havia o futebol e o motorista sempre demorava para me buscar. Levei a melhor bola que eu tinha em casa, dentro da mochila. Quando tive certeza que ninguém estava mais no pátio, peguei-a e a enchi. Eu a havia levado murcha para ninguém notar o volume na bolsa. Então sai à procura do filho do zelador. Não o encontrei. Mas deixei a bola e na segunda-feira, ela não estava lá.
Eu só soube que meu presente tinha sido aceito na sexta seguinte. Quando eu cheguei no estacionamento, ele estava com sua bola nova. Comecei a me aproximar bem devagar, mas ele me ouviu e se virou. Eu sorri, mas ele não sorriu de volta. Dava para ver seus dentes tortos por causa do lábio deformado.
– Fui eu que te deixei a bola.
Ele abaixou-se, pegou a bola e tentou entregá-la para mim.
– É sua. É um presente. Pode ficar – falei.
Ele a colocou embaixo do braço e falou algo parecido com “obrigado”. Então, me entregou uma moeda que tirou do bolso. Era uma forma de pagamento, eu logo entendi. 200 Cruzados Novos, de 1989. Estava fora de uso há quatro anos. Eu aceitei e sorri.
– Segunda eu estarei aqui de novo, nessa mesma hora e trarei chocolates – revelei.
Meu plano estava armado. A semana seguinte era de provas. Todo mundo que terminava ia embora, mas eu teria que ficar até o mesmo horário de sempre. O motorista não podia vir antes. O colégio seria todo meu por mais tempo durante cinco dias. Meu e do meu novo amigo. No sábado, pedi para a governanta ir ao supermercado e comprar doces e chocolates.
Na segunda-feira, terminei a prova por último só para ter certeza que todo mundo já tinha ido embora. Quando saí, fui até o estacionamento e deixei uma barra de chocolate e algumas balas em cima de uma mureta. No dia seguinte, havia cinco moedas de 1 Cruzado Novo. Deixei mais bombons.
Na quarta-feira, encontrei o garoto sentado na mureta. Ele pôs a mãos no bolso quando me viu e tirou mais moedas. Perguntei seu nome. “Hugo”, ele disse, dessa vez eu entendi perfeitamente. Falei que não era preciso pagar, mas ele insistiu. Sentei ao seu lado. Ele pareceu um pouco desconfortável no início, mas foi ficando mais à vontade a medida que eu falava.
Eu nunca interagia com ninguém na escola, então tinha muita coisa para dizer. Contei a ele como tinha sido minha prova, sobre um filme que tinha visto no dia anterior e falei que o diretor era um filha da puta e que o filho dele era uma veado que batia nos outros porque na verdade queria dar a bunda. Ele riu disso. Uma risada esquisita, parecia que estava tossindo, mas deu pra ver seu sorriso defeituoso e lágrimas escorreram dos seus olhos.
Ele pulou da mureta, fez sinal para que eu o esperasse e voltou de onde quer que tenha ido trazendo a bola. Ficamos tocando ela um para o outro. No começo, tive medo da força do seu chute, mas ele já tinha consciência do seu potencial e tocava devagar, mas de um jeito desengonçado. Suas pernas não tinham muita coordenação.
Quando deu a hora de ir, me despedi e fui embora. Eu tinha conquistado meu aliado, meu parceiro na luta contra o crime, contra os vilões. A semana seguiu com mais doces e eu ainda acrescentei alguns brinquedos. Ele adorou os Comandos em Ação. Ganhei um monte de moedas por eles. Pensei em lhe dar um jogo de tabuleiro, mas achei que ele não saberia o que fazer com aquilo. Quando eu não o via, deixava as coisas na mureta.
Após o fim das provas, meu tempo com Hugo encurtou. E o pior era que alguns alunos haviam ficado para aulas extras e sempre tinha gente no pátio. Eu me esforçava ao máximo para ir ao estacionamento sem ser visto. Eu consegui na primeiras vezes, mas acabei descoberto. Eles apareceram, quando eu e Hugo estávamos jogando bola de gude.
Um dos amigos do filho do diretor tinha contado a ele e a todos os cretinos da escola. Era mais ou menos uns 10. Chegaram imitando o som de um porco e dizendo que eu era a namorada do porco. Hugo se levantou, primeiro assustado, depois ficou com raiva. Vi seus punhos se fechando, eles estava pronto para a desforra.
Mas eu não deixei que ele os enfrentasse. Eu estava com tanto ódio e medo quando bolei aquele plano, que não havia percebido o óbvio. Numa briga entre o filho do diretor de uma escola de meninos ricos e o filho do zelador, não havia como acabar bem para Hugo e seu pai. Eu coloquei a mão no peito dele e disse para ele ir embora. Hugo não era muito inteligente, mas entendeu o recado.
O filho do diretor chegou por trás de mim. Não lembro o que ele disse, mas com certeza foi algum xingamento. Eu girei o braço e o acertei com um murro no lado esquerdo do rosto. Ele cambaleou para trás e eu o chutei no saco. Quando eu percebi o que tinha feito, a adrenalina me dominou. Toda aquela arrogância loira estava ajoelhada na minha frente, se cagando de dor. Seus capachos assustados com a derrota iminente do líder. Faltava o golpe final, mas não tive tempo de aplicá-lo. O diretor em pessoa apareceu. O filho da puta que nunca saía da sua sala me privou do meu momento de glória.
Ele me levou junto com seu filho para a enfermaria, mas eu não tinha um arranhão, então eu ri. Ri e gritei como um louco, dizendo que quem precisava de médico era a garotinha loira. Depois da confusão toda, fiquei trancado em uma sala da coordenação até o diretor vir falar comigo. Ele era o ódio em pessoa.
– Sabe que será expulso, Rodolfo? – perguntou, tentando fingir passividade.
– Você não vai fazer nada, sua boneca. Seu filho teve o que mereceu.
Ele respirou fundo e continuou.
– Meu filho disse que você estava com o filho do zelador. É verdade?
– Não.
– O que você estava fazendo no estacionamento?
– Estava mexendo no seu carro de merda.
O diretor abriu a porta pra mim. “Seu motorista chegou”, ele disse. Estava sorrindo. Não percebi na hora, mas ele tinha armado a vingança para seu filho.
O pátio estava vazio, mas eu sabia que alguém me observava. Mesmo tentando ficar atento, acabei sendo pego de surpresa. Um deles estava atrás na máquina de refrigerante. Outro apareceu do lado oposto, não vi de onde saiu. O filho do diretor apareceu por trás, me chutou nas costas e eu caí de cara no chão. Todos começaram a me bater.
Parecia que aquela surra não teria fim, até que, de repente, eles pararam. Eu me virei, achei que meu motorista havia chegado para me salvar, mas lá estava Hugo, parado com as mãos para trás, imóvel, cheio de calma e confiança. O menino loiro gargalhou. “O que você quer, porquinho?”, ele disse. Seus aliados riram. Ele virou-se para mim: “Seu namorado vai salvar, você? Porra nenhuma. Eu vou matar você, seu filho da puta”, gritou.
Ele me encarou durante alguns segundos. Foi a última vez que vi aquele rosto inteiro. Hugo não estava com as mãos para trás por nada, ele escondia uma marreta. Porra, e que marreta. Quando o loiro de virou para ele, levou no queixo. Eu ouvi o barulho dos ossos e dentes se partindo. Ele caiu de quatro. Seu maxilar tinha sido quase arrancado da cabeça.
Um dos capachos fugiu. O que ficou levou uma série de marretadas. Primeiro nos braços, quando tentou se defender, depois nas pernas e nas costas, quando estava no chão. Hugo correu atrás do que tinha corrido. Ele não conseguiu sair do pátio porque o portão estava fechado. Eu ouvi seus gritos e depois silêncio.
Tudo a partir daí é confuso. Meu motorista chegou e me tirou de lá. Acho que se ele não tivesse aparecido, o diretor teria feito alguma merda comigo. Depois vieram os professores. Houve gritos e choro. A confusão ficou lá por muito tempo. Fui pra casa, sem saber o que tinha acontecido com Hugo.
A governanta cuidou de mim quando cheguei. O motorista falou com ela, que ligou para o meu pai. Eu não sabia o que ele iria fazer. Meu pai nunca se interessava pelo que acontecia na escola, mas daquela vez não tinha como ele ignorar.
Ele entrou em casa, calmo como sempre. Passou por mim e mandou que eu o seguisse até o escritório. Lá dentro, eu fiquei em pé, enquanto ele se servia de uma dose de whisky.
– Alguém ligou do colégio, não lembro o nome. O diretor estava muito abalado para falar, então um funcionário ligou em nome dele. Ele disse que o filho do zelador atacou três alunos e que você escapou por pouco – meu pai falou, ainda de costas, mexendo o gelo.
Eu estava de vítima na história. Era só ficar calado, mas ali estava minha chance de mostrar que podia ser mais do que um menino protegido e mimado.
Na época, eu já sabia que meu pai era um criminoso, só não entendia qual era a verdadeira área de atuação dos seus negócios. À vista da sociedade, ele era apenas um empresário do ramos de construção civil. Mas meu pai também era ligado à máfia chinesa da cidade. Todo contrabando que chegava no porto tinha a mão dele. O velho também controlava algumas casas de prostituição, cassinos e uma boa parte da distribuição de drogas.
– Eu fiz o filho do zelador bater neles – falei, com firmeza.
Ele parou virou-se para mim e deu um gole na bebida. Estava impassível. Apenas aguardava uma explicação.
– Eles me batiam. Todos os dias. Eram mais fortes. Tive que me defender usando a cabeça.
– Podia ter falado comigo – ele disse.
– Eu não queria lhe envergonhar – e finalmente chorei – Queria mostrar que podia resolver tudo sozinho.
Meu pai terminou a dose de uma vez só e se aproximou de mim, sorrindo. Finalmente, orgulhoso de algo que fiz.
– E agora?
– E tenho um plano – revelei.
– Vamos pô-lo em prática.
A primeira coisa a se fazer era soltar Hugo. Meu pai subornou os agentes da fundação onde ele estava preso e inventaram uma história de que os outros internos o tinham matado. O segundo passo foi ir até sua casa e negociar com o zelador. Hugo iria morar conosco e ficaria sobre a tutela do meu pai. O zelador, agora desempregado, aceitou a grana oferecida sem nem pensar duas vezes.
Depois de tudo resolvido, meu pai pagou uma cirurgia nos lábios de Hugo. Não ficou perfeito, mas melhorou bastante. Ele também emagreceu, fez fisioterapia nas pernas e frequentou um fonoaudiólogo. Então fomos matriculados no mesmo colégio para fazer o segundo grau. Tudo acertado, óbvio, para Hugo nunca ser abordado em sala de aula por nenhum professor e sempre passar de ano sem fazer prova alguma. Afinal, ele estava lá para ser meu segurança particular e eu precisava dele sempre na mesma classe que eu.
Foram três anos de sossego na minha vida. Ninguém nunca sequer chegou perto de mim. Eu até comecei a conhecer garotas. Elas tinham medo de Hugo, então quando eu estava com uma delas pedia para ele ficar longe. Ele parecia não se importar. Em casa, jogávamos juntos, também íamos ao shopping, ao clube de campo. Eu tinha respeito e consideração por ele. Ele merecia.
Até meu pai gostava de Hugo. Nunca o escondeu de ninguém. Apresentava ele como seu filho adotivo em todas as ocasiões. Dizia que Marisa, minha mãe, sempre sonhou em adotar uma criança e que tinha realizado seu desejo depois que ela morreu. Hugo já socializava mais, mas continuava monossilábico. Porém, agora, dava para entender bem o que ele dizia.
Quando terminei o terceiro ano, fiz vestibular para direito e passei com facilidade. Na faculdade, Hugo não precisava mais me acompanhar. Foi aí que meu pai viu que ele tinha mais potencial do que já havia mostrado até então. Eu lembro da primeira vez que o chinês esteve lá em casa. Não era muito mais velho que o meu pai, mas estava bem mais em forma. Mestre Tao era seu nome. Ele examinou hugo e aceitou treiná-lo. Kung Fu.
A partir daí, nós mal nos víamos. Meu pai tinha apartamentos espalhados pela cidade. Eu me mudei para um que ficava perto da praia. Queria independência. Fiz amigos na faculdade e conheci garotas. Então, as drogas apareceram. As festas que eu dava todos os sábados eram conhecidas em toda cidade.
Continuei frequentando a casa do velho, afinal todo dinheiro que eu tinha vinha dele. Vez por outra, encontrava Hugo. Nos falávamos, mas não éramos mais amigos. Ele ainda gostava de mim, eu notava, mas não dava mais para andarmos juntos. Porém, ele não estava sozinho. Era do meu pai que Hugo cuidava agora.
Um domingo, após o almoço, encontrei alguns seguranças e perguntei como Hugo estava no trabalho. Notei um clima meio tenso, eles se entreolharam, sorriram de forma nervosa, mas um deles falou comigo. Disse que ele estava indo bem e que fazia tudo que meu pai ordenava com eficiência. Muitas vezes, até agia sozinho.
Preferi não ouvir os detalhes, mas não demorou muito para que eu soubesse no que meu antigo amigo havia se transformado. Um dos traficantes que me vendia cocaína apareceu na minha casa, disse que precisava de um lugar para ficar por uns tempos. Respondi que sim, mas ele acabou ficando mais tempo do que imaginei. Após um mês, quando até convidando gente ele já estava, pedi para ele ir embora e fui ameaçado. Ele disse que contaria tudo ao meu pai, minha festas, drogas. Meu pai não iria admitir, eu sabia.
Liguei para o chefe dos seguranças, pedindo para ele me ajudar e não contar para o velho. Ele disse que ficaria calado e mandaria alguém. Eu estava no quarto, quando a campainha tocou. Na sala, o traficante bebia com quatro amigos. Fui até lá e abri a porta. Hugo carregava uma arma que só depois vim saber se tratar de uma coisa chamada Alabarda.
Ele sorriu e eu o abracei, estava seguro de novo. Fui mais lindo do que aquele dia no pátio do colégio. Hugo agora usava lâminas e se movia muito mais rápido do que eu imaginava. Não houve nem tempo de alguém esboçar alguma reação. E o mais impressionante é que, além de rápido, foi tudo muito limpo. Cortes cirúrgicos, o mínimo de sangue derramado, nada de carnificina.
Eu me aquietei após esse episódio. Terminei o último ano da faculdade e passei em uma extensão nos EUA. Houve uma despedida e pedi a Hugo para tomar conta do meu pai. Seriam dois anos fora e quando voltasse, finalmente, começaria a assumir os negócios da família. Nesse período, recebia fotos do velho, sempre com Hugo ao seu lado. Pareciam felizes e cada vez mais unidos. Eu não tinha ciúmes, eu estava fazendo a minha parte. Eu era o cérebro da família, Hugo a força.
Nos EUA, uma antiga namorada foi passar um tempo comigo e ficamos morando juntos. Voltamos decididos a nos casarmos, mas primeiro eu precisava me estabelecer na empresa do meu pai. Comecei como advogado da construtora, que a essa altura era a maior do estado e uma das mais renomadas do país.
Mas não tardou para que eu ocupasse a vaga de vice-presidente. Também entrei de cabeça na parte ilegal do negócio. Mas a história com a máfia chinesa e os bordéis e drogas eram coisas do passado. Nosso ramo agora era o de obras superfaturadas e contratos ilícitos com políticos corruptos. Muito mais dinheiro envolvido. Milhões e milhões de reais.
Mas de uma hora para a outra, minha vida pessoal desmoronou. Eu tinha várias amantes e minha namorada me deixou quando descobriu um dos meus casos, pouco antes da data marcada para o casamento. Isso foi ruim, mas o pior foi o AVC do meu pai. Ele ficou com o lado esquerdo do corpo paralisado e precisou usar uma cadeira de rodas. Assumi o cargo de presidente. Eu tinha 27 anos. Solteiro, voltei às festas e às drogas. Hugo abandonou o trabalho de segurança e ficou cuidando do velho em tempo integral. E então, a relação deles se estreitou mais ainda.
Foi quando eu percebi que, apesar de todos os meus esforços, eu ainda era o garoto solitário no pátio do colégio. Minha namorada tinha me deixado, meu pai era mais amigo de um assassino adotado do que de mim, seu filho legítimo. Eu não tinha amigos, estava cercado por pessoas interesseiras que só queriam meu dinheiro ou minha influência.
Não lembro quando comecei a beber tanto, mas foi pouco antes do meu pai ter outro AVC. Ele me chamou ao seu quarto no hospital.
– Cuide do seu irmão – ele pediu
– Ele não é meu irmão – eu falei, com lágrimas nos olhos, completamente bêbado.
– Ele é mais do que isso e você sabe. Ele cuidou de nós dois. Não o deixe só.
Meu pai morreu no dia seguinte. No funeral, Hugo não saiu do lado do caixão. As pessoas os abraçavam e lhe davam os pêsames. Para mim, eram apertos de mãos frios. Chorei, mas não de tristeza, e sim de inveja. O menino gordo, das pernas desengonçadas e dos lábios de porco, havia roubado meu pai de mim. E eu iria me vingar.
Integrei Hugo à equipe de segurança de novo. Ele não disse nada, não agradeceu nem reclamou, estava abatido. Então planejei como me livrar dele. Os outros capangas, nem se eu oferecesse um milhão de reais, topariam tentar matá-lo. Também não confiava em ninguém de fora e resolvi agir sozinho.
Saímos só nós dois. Eu dirigi e ele foi no banco de carona. Ofereci um copo d’água onde eu tinha colocado sonífero. Um forte, claro. Demorou, mas ele adormeceu. Encostei próximo ao rio, soltei o freio de mão e empurrei o carro. Fiquei lá uns 10 minutos até ele afundar. Era impossível alguém sobreviver. Porém, nenhum cadáver foi achado. “Deve ter sido levado pelo rio”, pus na cabeça e segui em frente.
Achei que ficaria com remorsos. Poderia até ter ficado, mas me joguei nas drogas e nas prostitutas. Voltei a morar na casa do meu pai e fiz dela minha boate. Os negócios começaram a dar menos dinheiro, mas ainda havia o suficiente para ostentar. Nomeei um dos acionistas como presidente e passava os dias na esbórnia. Nenhum dos seguranças, nunca sequer perguntou por Hugo. Todos sabiam que eu era o responsável pelo sumiço dele e que se me confrontasse se dariam mal.
Mas um dia, quase um mês depois, um deles veio até mim. Disse que tinham visto alguém espiando a casa. As câmeras mostraram uma pessoa, toda de preto, observando perto do muro. Não dava para ver muita coisa, estava escuro. Dois dias mais tarde, ele apareceu de novo. Agora do outro lado da mansão.
Decidi montar equipes de busca. Falei que pagaria uma pequena fortuna pela cabeça de Hugo. Meus capangas tinham medo, então espalhei a notícia para os marginais da cidade. Eles reviraram a cidade de cabeça para baixo, mas não o acharam. Então lembrei de um lugar onde ele pudesse ter ido. Chamei quatro homens meus e fomos juntos à casa do pai dele.
A residência ficava num bairro de classe média, com o dinheiro do meu pai o antigo zelador tinha se dado bem. Mas a casa mesmo estava toda acabada. Só dava para ver que alguém morava lá, por causa das janelas abertas. O velho nos viu chegar e abriu a porta. O encontramos num sofá, em frente à TV. A sala era uma bagunça, havia gatos por todos os cantos, fedia muito.
– O que você quer?
– Hugo. Onde ele está?
– Se você não sabe, como eu vou saber?
Sentei ao seu lado. Só então notei que um dos seus olhos estava todo branco.
– Estou doente – ele disse.
– Não me interessa. Quero saber do seu filho.
Ele me encarou com seu olho bom e abriu um sorriso com dentes podres.
– Está com medo do meu menino. Acho bom mesmo. Ele veio aqui, ferido, confuso, todo molhado. Veio pegar dinheiro. Achei que estava falando das suas velhas moedas, mas ele queria dinheiro de verdade. Ainda tenho aquelas moedas antigas, estão todas espalhadas por aí. Um dia elas ainda vão valer uma fortuna e quem achar ficará milionário.
O velho estava esclerosado, isso era claro, mas a parte de Hugo ter aparecido podia ser verdade. “Molhado”, ele disse. Pensei em mandar matá-lo, só que tive pena. Levantei e fui embora.
Naquela noite, eu tive uma reunião de negócios importantíssima. Apesar de afastado do cargo de presidente, as falcatruas da empresa eram todas comigo. O encontro foi no saguão de um hotel cinco estrelas. Dez seguranças estavam de prontidão. Resolvi tudo rápido, não conseguia pensar direito. Depois subi para um dos quartos com duas garotas de programa e uma mala cheia de drogas. Secamos a geladeira e o serviço de quarto trouxe mais champanhe, cerveja e whisky.
Eu estava tão louco que quando deram o primeiro tiro, que não sabia se era real ou se tinha sido minha imaginação. Mas o segundo veio acompanhado de gritos e eu saltei da cama. As mulheres correram para o banheiros. Em casa, havia uma pistola na minha cabeceira, mas lá eu estava completamente vulnerável.
Mais tiros no corredor. Outros gritos. Um dos seguranças, entrou no quarto, ferido, mancando. “Chefe, tenho que tirá-lo daqui”, ele disse. “Fecha a porta, porra”, gritei, mas não sei se fui ouvido. Uma bala estorou a cabeça dele. O sangue salpicou em mim. Corri de volta pra cama, não havia mais o que fazer.
Limpei o rosto e o vi entrando. Trazia um fuzil na mão. Era alto e magro. Estava com uma máscara preta. Não era Hugo. Eu chorei, puxei o lençol para mim como uma criança com medo do monstro que sai do armário. O homem subiu na cama e descobriu o rosto. Seu cabelo louro, quase branco, caiu na testa. Uma cicatriz gigante na face. Seu queixo se mexia lentamente como uma caveira de filme de terror, enquanto ele sorria. Eu o reconheci e gelei.
Foram segundos intermináveis, até ele apontar a arma em minha direção. Três tiros acertaram meu estômago. Cuspi sangue, me contorci, me mijei e me caguei. Ele engatilhou de novo, mas o que ouvi dessa vez foi seu grito. Quando olhei, o filho do diretor havia sido transpassado por uma kitana bem no coração. Ele soltou o fuzil e caiu na minha frente. Hugo me pegou nos braços. Eu tentei falar, mas só conseguia chorar e salivar.
Mesmo depois de tudo, ele estava lá para salvar. De novo. Hoje eu não ando mais. Por conta dos ferimentos, estou em uma cadeira de rodas. Hugo me leva para todos os lugares. Quando meu pai disse “cuide do seu irmão”, estava falando com o filho errado. Estarei em dívida com os dois até o fim da minha vida.