Hugo

gordinho

Quando eu tinha 10 anos, gostava de imaginar que era o Demolidor. Era meu personagem favorito. Mas, nas minhas brincadeiras, eu não era cego. Eu não entendia como alguém com uma deficiência poderia ser um super-herói, mesmo que tivesse poderes que a compensassem. Eu era o Demolidor, mas eu enxergava.

Naquela sexta-feira, eu estava sozinho mais uma vez no pátio da escola e era o Demolidor, percorrendo os corredores da cidade, defendendo os fracos e oprimidos. Sei que era uma sexta-feira, porque os garotos da minha turma tinham ido jogar futebol. Eu não jogava com eles. Eu nem sequer falava com eles, nem com ninguém das outras classes. Na maior parte do tempo, eu desejava que todos estivessem mortos.

O estacionamento dos professores ficava nos fundos. Eu estava caminhando até lá, quando ouvi alguma coisa. Encurtei os passos e me escondi atrás de uma pilastra para observar. Só havia o carro do diretor. Ao lado dele, o filho do zelador estava brincando com uma velha bola de couro, chutando-a na parede.

Eu já o tinha visto algumas vezes, andando ao lado do pai e ajudando nos serviços. Alguns alunos falavam dele. Chamavam ele de porco. Era um menino gordo, da minha idade, com um cabelo loiro crespo e que sofria de lábio leporino. Tanto ele quanto seu pai se limitavam ao trabalho e quase nunca ficavam à nossa vista. Eu nunca tinha visto o menino sozinho, até então.

De repente a bola passou por entre as suas pernas e foi parar embaixo do carro. Aí ele levantou a parte dianteira do veículo, como se fosse uma caixa de papelão, e arrastou a bola para o lado com o pé. O alarme disparou. Ele soltou o carro, pegou a bola e saiu correndo. Eu permaneci imóvel, incrédulo com o que tinha acabado de ver.

Por causa do barulho ensurdecedor, não notei quando alguém chegou por trás de mim. Senti a mão do zelador no meu ombro e, na mesma hora, percebi que seria levado à direção do colégio e culpado por ter mexido no carro. Normalmente, eu ficaria apavorado com isso, mas naquela hora nada daquilo importava.

O diretor era um sujeito extremamente magro e calvo. Sempre de terno preto e óculos gigantescos. Eu estava na sala de espera, quando a porta se abriu e o filho dele saiu de lá. Não lembro o nome dele. Ele era o fodão da escola e se aproveitava do cargo do pai para se impor. Ele devia ter uns 13 anos anos na época. Era da última turma. Naquela escola só havia o primeiro grau.

Minha mochila estava no chão. Ele cuspiu nela, sorriu pra mim e disse alguma coisa. Eu não respondi, virei o rosto, eu tinha muito medo dele. Fiquei olhando para o lado, até ter certeza de que tinha ido embora. Meu coração estava disparado e eu senti ódio e vergonha. A secretária apareceu e me mandou entrar.

O diretor estava em sua mesa, me olhando por cima dos óculos. Ele me detestava, mas sabia quem era o meu pai. Eu, que ainda era uma criança na época, já sabia que homens como o diretor temem homens como o meu pai.

– O que estava fazendo no estacionamento, Rodolfo? – ele perguntou.

– Nada, senhor. Estava só olhando, senhor.

– E por quê mexeu no meu carro?

– Não mexi, senhor. O alarme disparou sozinho, senhor.

Ele respirou fundo e então me entregou uma folha de papel.

– Isso é para o seu pai. O seu motorista já chegou, você pode ir.

– Sim, senhor. Obrigado, senhor.

Li o bilhete no caminho para casa: “Doutor Armando, seu filho foi chamado á minha sala, por se comportar mal. Peço que entre em contato com a diretoria da escola para maiores esclarecimentos.”

Meu pai nunca recebeu aquele bilhete. Eu joguei fora da mesma forma que havia jogado todos os outros. Ele nunca se importava com o que acontecia comigo na escola e eu também não contava para que não tivesse vergonha de mim. Era o melhor colégio para garotos da cidade, só os ricaços estudavam lá. Eu fazia minha parte, tirava notas boas e ele ficava satisfeito quando eu passava de ano. O diretor também nunca cobrava respostas aos bilhetes que mandava. Ele sabia quem era o meu pai.

A semana seguinte transcorreu de maneira natural. Eu passava os dias sem falar com ninguém e, vez por outra, alguém ria ou dizia alguma coisa quando cruzava comigo. Isso eu tirava de letra, mas às vezes o filho do diretor me abordava. Seu cabelo extremamente loiro, quase branco. Era como um vilão de histórias em quadrinhos. Usávamos terno naquela escola. Eu dia ele me segurou pela gravata e me abaixou até o chão. Os outros garotos riram, ele gostava de plateia. Eu nunca reagia, tentava apenas não chorar na frente dos outros, mas nem sempre conseguia.

Então, eu decidi que aquilo teria que terminar. Na sexta, eu sempre ficava sozinho. Havia o futebol e o motorista sempre demorava para me buscar. Levei a melhor bola que eu tinha em casa, dentro da mochila. Quando tive certeza que ninguém estava mais no pátio, peguei-a e a enchi. Eu a havia levado murcha para ninguém notar o volume na bolsa. Então sai à procura do filho do zelador. Não o encontrei. Mas deixei a bola e na segunda-feira, ela não estava lá.

Eu só soube que meu presente tinha sido aceito na sexta seguinte. Quando eu cheguei no estacionamento, ele estava com sua bola nova. Comecei a me aproximar bem devagar, mas ele me ouviu e se virou. Eu sorri, mas ele não sorriu de volta. Dava para ver seus dentes tortos por causa do lábio deformado.

– Fui eu que te deixei a bola.

Ele abaixou-se, pegou a bola e tentou entregá-la para mim.

– É sua. É um presente. Pode ficar – falei.

Ele a colocou embaixo do braço e falou algo parecido com “obrigado”. Então, me entregou uma moeda que tirou do bolso. Era uma forma de pagamento, eu logo entendi. 200 Cruzados Novos, de 1989. Estava fora de uso há quatro anos. Eu aceitei e sorri.

– Segunda eu estarei aqui de novo, nessa mesma hora e trarei chocolates – revelei.

Meu plano estava armado. A semana seguinte era de provas. Todo mundo que terminava ia embora, mas eu teria que ficar até o mesmo horário de sempre. O motorista não podia vir antes. O colégio seria todo meu por mais tempo durante cinco dias. Meu e do meu novo amigo. No sábado, pedi para a governanta ir ao supermercado e comprar doces e chocolates.

Na segunda-feira, terminei a prova por último só para ter certeza que todo mundo já tinha ido embora. Quando saí, fui até o estacionamento e deixei uma barra de chocolate e algumas balas em cima de uma mureta. No dia seguinte, havia cinco moedas de 1 Cruzado Novo. Deixei mais bombons.

Na quarta-feira, encontrei o garoto sentado na mureta. Ele pôs a mãos no bolso quando me viu e tirou mais moedas. Perguntei seu nome. “Hugo”, ele disse, dessa vez eu entendi perfeitamente. Falei que não era preciso pagar, mas ele insistiu. Sentei ao seu lado. Ele pareceu um pouco desconfortável no início, mas foi ficando mais à vontade a medida que eu falava.

Eu nunca interagia com ninguém na escola, então tinha muita coisa para dizer. Contei a ele como tinha sido minha prova, sobre um filme que tinha visto no dia anterior e falei que o diretor era um filha da puta e que o filho dele era uma veado que batia nos outros porque na verdade queria dar a bunda. Ele riu disso. Uma risada esquisita, parecia que estava tossindo, mas deu pra ver seu sorriso defeituoso e lágrimas escorreram dos seus olhos.

Ele pulou da mureta, fez sinal para que eu o esperasse e voltou de onde quer que tenha ido trazendo a bola. Ficamos tocando ela um para o outro. No começo, tive medo da força do seu chute, mas ele já tinha consciência do seu potencial e tocava devagar, mas de um jeito desengonçado. Suas pernas não tinham muita coordenação.

Quando deu a hora de ir, me despedi e fui embora. Eu tinha conquistado meu aliado, meu parceiro na luta contra o crime, contra os vilões. A semana seguiu com mais doces e eu ainda acrescentei alguns brinquedos. Ele adorou os Comandos em Ação. Ganhei um monte de moedas por eles. Pensei em lhe dar um jogo de tabuleiro, mas achei que ele não saberia o que fazer com aquilo. Quando eu não o via, deixava as coisas na mureta.

Após o fim das provas, meu tempo com Hugo encurtou. E o pior era que alguns alunos haviam ficado para aulas extras e sempre tinha gente no pátio. Eu me esforçava ao máximo para ir ao estacionamento sem ser visto. Eu consegui na primeiras vezes, mas acabei descoberto. Eles apareceram, quando eu e Hugo estávamos jogando bola de gude.

Um dos amigos do filho do diretor tinha contado a ele e a todos os cretinos da escola. Era mais ou menos uns 10. Chegaram imitando o som de um porco e dizendo que eu era a namorada do porco. Hugo se levantou, primeiro assustado, depois ficou com raiva. Vi seus punhos se fechando, eles estava pronto para a desforra.

Mas eu não deixei que ele os enfrentasse. Eu estava com tanto ódio e medo quando bolei aquele plano, que não havia percebido o óbvio. Numa briga entre o filho do diretor de uma escola de meninos ricos e o filho do zelador, não havia como acabar bem para Hugo e seu pai. Eu coloquei a mão no peito dele e disse para ele ir embora. Hugo não era muito inteligente, mas entendeu o recado.

O filho do diretor chegou por trás de mim. Não lembro o que ele disse, mas com certeza foi algum xingamento. Eu girei o braço e o acertei com um murro no lado esquerdo do rosto. Ele cambaleou para trás e eu o chutei no saco. Quando eu percebi o que tinha feito, a adrenalina me dominou. Toda aquela arrogância loira estava ajoelhada na minha frente, se cagando de dor. Seus capachos assustados com a derrota iminente do líder. Faltava o golpe final, mas não tive tempo de aplicá-lo. O diretor em pessoa apareceu. O filho da puta que nunca saía da sua sala me privou do meu momento de glória.

Ele me levou junto com seu filho para a enfermaria, mas eu não tinha um arranhão, então eu ri. Ri e gritei como um louco, dizendo que quem precisava de médico era a garotinha loira. Depois da confusão toda, fiquei trancado em uma sala da coordenação até o diretor vir falar comigo. Ele era o ódio em pessoa.

– Sabe que será expulso, Rodolfo? – perguntou, tentando fingir passividade.

– Você não vai fazer nada, sua boneca. Seu filho teve o que mereceu.

Ele respirou fundo e continuou.

– Meu filho disse que você estava com o filho do zelador. É verdade?

– Não.

– O que você estava fazendo no estacionamento?

– Estava mexendo no seu carro de merda.

O diretor abriu a porta pra mim. “Seu motorista chegou”, ele disse. Estava sorrindo. Não percebi na hora, mas ele tinha armado a vingança para seu filho.

O pátio estava vazio, mas eu sabia que alguém me observava. Mesmo tentando ficar atento, acabei sendo pego de surpresa. Um deles estava atrás na máquina de refrigerante. Outro apareceu do lado oposto, não vi de onde saiu. O filho do diretor apareceu por trás, me chutou nas costas e eu caí de cara no chão. Todos começaram a me bater.

Parecia que aquela surra não teria fim, até que, de repente, eles pararam. Eu me virei, achei que meu motorista havia chegado para me salvar, mas lá estava Hugo, parado com as mãos para trás, imóvel, cheio de calma e confiança. O menino loiro gargalhou. “O que você quer, porquinho?”, ele disse. Seus aliados riram. Ele virou-se para mim: “Seu namorado vai salvar, você? Porra nenhuma. Eu vou matar você, seu filho da puta”, gritou.

Ele me encarou durante alguns segundos. Foi a última vez que vi aquele rosto inteiro. Hugo não estava com as mãos para trás por nada, ele escondia uma marreta. Porra, e que marreta. Quando o loiro de virou para ele, levou no queixo. Eu ouvi o barulho dos ossos e dentes se partindo. Ele caiu de quatro. Seu maxilar tinha sido quase arrancado da cabeça.

Um dos capachos fugiu. O que ficou levou uma série de marretadas. Primeiro nos braços, quando tentou se defender, depois nas pernas e nas costas, quando estava no chão. Hugo correu atrás do que tinha corrido. Ele não conseguiu sair do pátio porque o portão estava fechado. Eu ouvi seus gritos e depois silêncio.

Tudo a partir daí é confuso. Meu motorista chegou e me tirou de lá. Acho que se ele não tivesse aparecido, o diretor teria feito alguma merda comigo. Depois vieram os professores. Houve gritos e choro. A confusão ficou lá por muito tempo. Fui pra casa, sem saber o que tinha acontecido com Hugo.

A governanta cuidou de mim quando cheguei. O motorista falou com ela, que ligou para o meu pai. Eu não sabia o que ele iria fazer. Meu pai nunca se interessava pelo que acontecia na escola, mas daquela vez não tinha como ele ignorar.

Ele entrou em casa, calmo como sempre. Passou por mim e mandou que eu o seguisse até o escritório. Lá dentro, eu fiquei em pé, enquanto ele se servia de uma dose de whisky.

– Alguém ligou do colégio, não lembro o nome. O diretor estava muito abalado para falar, então um funcionário ligou em nome dele. Ele disse que o filho do zelador atacou três alunos e que você escapou por pouco – meu pai falou, ainda de costas, mexendo o gelo.

Eu estava de vítima na história. Era só ficar calado, mas ali estava minha chance de mostrar que podia ser mais do que um menino protegido e mimado.

Na época, eu já sabia que meu pai era um criminoso, só não entendia qual era a verdadeira área de atuação dos seus negócios. À vista da sociedade, ele era apenas um empresário do ramos de construção civil. Mas meu pai também era ligado à máfia chinesa da cidade. Todo contrabando que chegava no porto tinha a mão dele. O velho também controlava algumas casas de prostituição, cassinos e uma boa parte da distribuição de drogas.

– Eu fiz o filho do zelador bater neles – falei, com firmeza.

Ele parou virou-se para mim e deu um gole na bebida. Estava impassível. Apenas aguardava uma explicação.

– Eles me batiam. Todos os dias. Eram mais fortes. Tive que me defender usando a cabeça.

– Podia ter falado comigo – ele disse.

– Eu não queria lhe envergonhar – e finalmente chorei – Queria mostrar que podia resolver tudo sozinho.

Meu pai terminou a dose de uma vez só e se aproximou de mim, sorrindo. Finalmente, orgulhoso de algo que fiz.

– E agora?

– E tenho um plano – revelei.

– Vamos pô-lo em prática.

A primeira coisa a se fazer era soltar Hugo. Meu pai subornou os agentes da fundação onde ele estava preso e inventaram uma história de que os outros internos o tinham matado. O segundo passo foi ir até sua casa e negociar com o zelador. Hugo iria morar conosco e ficaria sobre a tutela do meu pai. O zelador, agora desempregado, aceitou a grana oferecida sem nem pensar duas vezes.

Depois de tudo resolvido, meu pai pagou uma cirurgia nos lábios de Hugo. Não ficou perfeito, mas melhorou bastante. Ele também emagreceu, fez fisioterapia nas pernas e frequentou um fonoaudiólogo. Então fomos matriculados no mesmo colégio para fazer o segundo grau. Tudo acertado, óbvio, para Hugo nunca ser abordado em sala de aula por nenhum professor e sempre passar de ano sem fazer prova alguma. Afinal, ele estava lá para ser meu segurança particular e eu precisava dele sempre na mesma classe que eu.

Foram três anos de sossego na minha vida. Ninguém nunca sequer chegou perto de mim. Eu até comecei a conhecer garotas. Elas tinham medo de Hugo, então quando eu estava com uma delas pedia para ele ficar longe. Ele parecia não se importar. Em casa, jogávamos juntos, também íamos ao shopping, ao clube de campo. Eu tinha respeito e consideração por ele. Ele merecia.

Até meu pai gostava de Hugo. Nunca o escondeu de ninguém. Apresentava ele como seu filho adotivo em todas as ocasiões. Dizia que Marisa, minha mãe, sempre sonhou em adotar uma criança e que tinha realizado seu desejo depois que ela morreu. Hugo já socializava mais, mas continuava monossilábico. Porém, agora, dava para entender bem o que ele dizia.

Quando terminei o terceiro ano, fiz vestibular para direito e passei com facilidade. Na faculdade, Hugo não precisava mais me acompanhar. Foi aí que meu pai viu que ele tinha mais potencial do que já havia mostrado até então. Eu lembro da primeira vez que o chinês esteve lá em casa. Não era muito mais velho que o meu pai, mas estava bem mais em forma. Mestre Tao era seu nome. Ele examinou hugo e aceitou treiná-lo. Kung Fu.

A partir daí, nós mal nos víamos. Meu pai tinha apartamentos espalhados pela cidade. Eu me mudei para um que ficava perto da praia. Queria independência. Fiz amigos na faculdade e conheci garotas. Então, as drogas apareceram. As festas que eu dava todos os sábados eram conhecidas em toda cidade.

Continuei frequentando a casa do velho, afinal todo dinheiro que eu tinha vinha dele. Vez por outra, encontrava Hugo. Nos falávamos, mas não éramos mais amigos. Ele ainda gostava de mim, eu notava, mas não dava mais para andarmos juntos. Porém, ele não estava sozinho. Era do meu pai que Hugo cuidava agora.

Um domingo, após o almoço, encontrei alguns seguranças e perguntei como Hugo estava no trabalho. Notei um clima meio tenso, eles se entreolharam, sorriram de forma nervosa, mas um deles falou comigo. Disse que ele estava indo bem e que fazia tudo que meu pai ordenava com eficiência. Muitas vezes, até agia sozinho.

Preferi não ouvir os detalhes, mas não demorou muito para que eu soubesse no que meu antigo amigo havia se transformado. Um dos traficantes que me vendia cocaína apareceu na minha casa, disse que precisava de um lugar para ficar por uns tempos. Respondi que sim, mas ele acabou ficando mais tempo do que imaginei. Após um mês, quando até convidando gente ele já estava, pedi para ele ir embora e fui ameaçado. Ele disse que contaria tudo ao meu pai, minha festas, drogas. Meu pai não iria admitir, eu sabia.

Liguei para o chefe dos seguranças, pedindo para ele me ajudar e não contar para o velho. Ele disse que ficaria calado e mandaria alguém. Eu estava no quarto, quando a campainha tocou. Na sala, o traficante bebia com quatro amigos. Fui até lá e abri a porta. Hugo carregava uma arma que só depois vim saber se tratar de uma coisa chamada Alabarda.

Ele sorriu e eu o abracei, estava seguro de novo. Fui mais lindo do que aquele dia no pátio do colégio. Hugo agora usava lâminas e se movia muito mais rápido do que eu imaginava. Não houve nem tempo de alguém esboçar alguma reação. E o mais impressionante é que, além de rápido, foi tudo muito limpo. Cortes cirúrgicos, o mínimo de sangue derramado, nada de carnificina.

Eu me aquietei após esse episódio. Terminei o último ano da faculdade e passei em uma extensão nos EUA. Houve uma despedida e pedi a Hugo para tomar conta do meu pai. Seriam dois anos fora e quando voltasse, finalmente, começaria a assumir os negócios da família. Nesse período, recebia fotos do velho, sempre com Hugo ao seu lado. Pareciam felizes e cada vez mais unidos. Eu não tinha ciúmes, eu estava fazendo a minha parte. Eu era o cérebro da família, Hugo a força.

Nos EUA, uma antiga namorada foi passar um tempo comigo e ficamos morando juntos. Voltamos decididos a nos casarmos, mas primeiro eu precisava me estabelecer na empresa do meu pai. Comecei como advogado da construtora, que a essa altura era a maior do estado e uma das mais renomadas do país.

Mas não tardou para que eu ocupasse a vaga de vice-presidente. Também entrei de cabeça na parte ilegal do negócio. Mas a história com a máfia chinesa e os bordéis e drogas eram coisas do passado. Nosso ramo agora era o de obras superfaturadas e contratos ilícitos com políticos corruptos. Muito mais dinheiro envolvido. Milhões e milhões de reais.

Mas de uma hora para a outra, minha vida pessoal desmoronou. Eu tinha várias amantes e minha namorada me deixou quando descobriu um dos meus casos, pouco antes da data marcada para o casamento. Isso foi ruim, mas o pior foi o AVC do meu pai. Ele ficou com o lado esquerdo do corpo paralisado e precisou usar uma cadeira de rodas. Assumi o cargo de presidente. Eu tinha 27 anos. Solteiro, voltei às festas e às drogas. Hugo abandonou o trabalho de segurança e ficou cuidando do velho em tempo integral. E então, a relação deles se estreitou mais ainda.

Foi quando eu percebi que, apesar de todos os meus esforços, eu ainda era o garoto solitário no pátio do colégio. Minha namorada tinha me deixado, meu pai era mais amigo de um assassino adotado do que de mim, seu filho legítimo. Eu não tinha amigos, estava cercado por pessoas interesseiras que só queriam meu dinheiro ou minha influência.

Não lembro quando comecei a beber tanto, mas foi pouco antes do meu pai ter outro AVC. Ele me chamou ao seu quarto no hospital.

– Cuide do seu irmão – ele pediu

– Ele não é meu irmão – eu falei, com lágrimas nos olhos, completamente bêbado.

– Ele é mais do que isso e você sabe. Ele cuidou de nós dois. Não o deixe só.

Meu pai morreu no dia seguinte. No funeral, Hugo não saiu do lado do caixão. As pessoas os abraçavam e lhe davam os pêsames. Para mim, eram apertos de mãos frios. Chorei, mas não de tristeza, e sim de inveja. O menino gordo, das pernas desengonçadas e dos lábios de porco, havia roubado meu pai de mim. E eu iria me vingar.

Integrei Hugo à equipe de segurança de novo. Ele não disse nada, não agradeceu nem reclamou, estava abatido. Então planejei como me livrar dele. Os outros capangas, nem se eu oferecesse um milhão de reais, topariam tentar matá-lo. Também não confiava em ninguém de fora e resolvi agir sozinho.

Saímos só nós dois. Eu dirigi e ele foi no banco de carona. Ofereci um copo d’água onde eu tinha colocado sonífero. Um forte, claro. Demorou, mas ele adormeceu. Encostei próximo ao rio, soltei o freio de mão e empurrei o carro. Fiquei lá uns 10 minutos até ele afundar. Era impossível alguém sobreviver. Porém, nenhum cadáver foi achado. “Deve ter sido levado pelo rio”, pus na cabeça e segui em frente.

Achei que ficaria com remorsos. Poderia até ter ficado, mas me joguei nas drogas e nas prostitutas. Voltei a morar na casa do meu pai e fiz dela minha boate. Os negócios começaram a dar menos dinheiro, mas ainda havia o suficiente para ostentar. Nomeei um dos acionistas como presidente e passava os dias na esbórnia. Nenhum dos seguranças, nunca sequer perguntou por Hugo. Todos sabiam que eu era o responsável pelo sumiço dele e que se me confrontasse se dariam mal.

Mas um dia, quase um mês depois, um deles veio até mim. Disse que tinham visto alguém espiando a casa. As câmeras mostraram uma pessoa, toda de preto, observando perto do muro. Não dava para ver muita coisa, estava escuro. Dois dias mais tarde, ele apareceu de novo. Agora do outro lado da mansão.

Decidi montar equipes de busca. Falei que pagaria uma pequena fortuna pela cabeça de Hugo. Meus capangas tinham medo, então espalhei a notícia para os marginais da cidade. Eles reviraram a cidade de cabeça para baixo, mas não o acharam. Então lembrei de um lugar onde ele pudesse ter ido. Chamei quatro homens meus e fomos juntos à casa do pai dele.

A residência ficava num bairro de classe média, com o dinheiro do meu pai o antigo zelador tinha se dado bem. Mas a casa mesmo estava toda acabada. Só dava para ver que alguém morava lá, por causa das janelas abertas. O velho nos viu chegar e abriu a porta. O encontramos num sofá, em frente à TV. A sala era uma bagunça, havia gatos por todos os cantos, fedia muito.

– O que você quer?

– Hugo. Onde ele está?

– Se você não sabe, como eu vou saber?

Sentei ao seu lado. Só então notei que um dos seus olhos estava todo branco.

– Estou doente – ele disse.

– Não me interessa. Quero saber do seu filho.

Ele me encarou com seu olho bom e abriu um sorriso com dentes podres.

– Está com medo do meu menino. Acho bom mesmo. Ele veio aqui, ferido, confuso, todo molhado. Veio pegar dinheiro. Achei que estava falando das suas velhas moedas, mas ele queria dinheiro de verdade. Ainda tenho aquelas moedas antigas, estão todas espalhadas por aí. Um dia elas ainda vão valer uma fortuna e quem achar ficará milionário.

O velho estava esclerosado, isso era claro, mas a parte de Hugo ter aparecido podia ser verdade. “Molhado”, ele disse. Pensei em mandar matá-lo, só que tive pena. Levantei e fui embora.

Naquela noite, eu tive uma reunião de negócios importantíssima. Apesar de afastado do cargo de presidente, as falcatruas da empresa eram todas comigo. O encontro foi no saguão de um hotel cinco estrelas. Dez seguranças estavam de prontidão. Resolvi tudo rápido, não conseguia pensar direito. Depois subi para um dos quartos com duas garotas de programa e uma mala cheia de drogas. Secamos a geladeira e o serviço de quarto trouxe mais champanhe, cerveja e whisky.

Eu estava tão louco que quando deram o primeiro tiro, que não sabia se era real ou se tinha sido minha imaginação. Mas o segundo veio acompanhado de gritos e eu saltei da cama. As mulheres correram para o banheiros. Em casa, havia uma pistola na minha cabeceira, mas lá eu estava completamente vulnerável.

Mais tiros no corredor. Outros gritos. Um dos seguranças, entrou no quarto, ferido, mancando. “Chefe, tenho que tirá-lo daqui”, ele disse. “Fecha a porta, porra”, gritei, mas não sei se fui ouvido. Uma bala estorou a cabeça dele. O sangue salpicou em mim. Corri de volta pra cama, não havia mais o que fazer.

Limpei o rosto e o vi entrando. Trazia um fuzil na mão. Era alto e magro. Estava com uma máscara preta. Não era Hugo. Eu chorei, puxei o lençol para mim como uma criança com medo do monstro que sai do armário. O homem subiu na cama e descobriu o rosto. Seu cabelo louro, quase branco, caiu na testa. Uma cicatriz gigante na face. Seu queixo se mexia lentamente como uma caveira de filme de terror, enquanto ele sorria. Eu o reconheci e gelei.

Foram segundos intermináveis, até ele apontar a arma em minha direção. Três tiros acertaram meu estômago. Cuspi sangue, me contorci, me mijei e me caguei. Ele engatilhou de novo, mas o que ouvi dessa vez foi seu grito. Quando olhei, o filho do diretor havia sido transpassado por uma kitana bem no coração. Ele soltou o fuzil e caiu na minha frente. Hugo me pegou nos braços. Eu tentei falar, mas só conseguia chorar e salivar.

Mesmo depois de tudo, ele estava lá para salvar. De novo. Hoje eu não ando mais. Por conta dos ferimentos, estou em uma cadeira de rodas. Hugo me leva para todos os lugares. Quando meu pai disse “cuide do seu irmão”, estava falando com o filho errado. Estarei em dívida com os dois até o fim da minha vida.

Publicado em Uncategorized | Marcado com , | 3 Comentários

Deixa eu te dizer uma coisa

ovni1

Olha, presta atenção, tudo isso aconteceu no ano passado, exatamente no dia em que a nave pousou no Marco Zero. Bom, pousar não é bem o termo, já que ela não nunca aterrissou, só ficou flutuando lá, a uns 100m do chão. Você lembra, né? Ah, você não estava na cidade naquele dia? Porra, sorte a sua. Podia ter morrido.

Escute bem, esse dia foi foda. Todo mundo correndo, teve gente que se matou pensando que o mundo estava sendo invadido e tal, você sabe. Mas eu não tinha tempo para pensar nessas coisas, eu tinha que entregar a encomenda. Propina, sabe, de empreiteiros, porra, coisa grande, 15 milhões de reais.

Você está me ouvindo bem? Era uma responsabilidade do caralho. O deputado não queria nem saber de porra de disco voador, ET, telefone, minha casa, essa merdas. Ele queria o caixa 2 dele. É foda. A porra dos aliens tinham que pintar por aqui logo em ano eleitoral? Tipo, podiam ter vindo hoje, por exemplo, que eu tô aqui sem fazer porra nenhuma. Não, né? Foi melhor do jeito que foi.

Mas veja bem, se ligue na parada, o fato é que meu motorista ficou com tanto medo dos alienígenas que fugiu e me deixou na mão. Eu tinha que entregar o pacote. Era um inferno. A Polícia Militar não sabia o que fazer, os caras não controlam protesto de estudante, quem dirá a porra da Guerra dos Mundos.

Estou te dizendo cara, tive eu mesmo que pegar o carro e dirigir até o gabinete do homem lá na Assembléia, no meio do cu de boi todo. Cara, nunca via tantos helicópteros nessa cidade. No começo não estava tão engarrafado, pois o fluxo era todo voltando do centro da cidade. Na rádio, o repórter ia soltando as novidades. Os americanos já haviam chegado, pois eles estavam monitorando aquela porra desde que ela começou a se aproximar da Terra.

Tu sabe, claro, que a nave tem um campo de força. Foi uma merda, vá por mim, meteram tiro, as balas ricochetearam e deu a maior merda. Morreu gente e tudo. Tu tá ligado? Enfim, quando eu dobrei na Cruz Cabugá, tava um inferno, véi. Um monte de carro e ônibus abandonados, era impossível passar. Desci com a maleta e saí correndo. Mas sou fumante, como você pode notar. Quer cigarro? Não? Tá bom.

Então, voltando, quando eu cheguei no parque 13 de Maio, tive que parar para recuperar o fôlego. Nesse momento, ouvi uma explosão. Tinham lançado o míssel na nave, mas nem isso destruiu o campo de força. Você nunca leu sobre isso? Porra, doido, isso foi na tua cidade, tem que saber dessas coisas. Vê bem, a explosão derrubou uma porrada de prédio lá e fez um buraco do caralho no chão.

Então, depois de descansar fui andando até a Assembléia, mas o prédio havia sido evacuado, nem os policiais estavam mais lá. Tudo deserto. O celular não pegava mais. Então subi as escadas e entrei no gabinete do dr. Ferreira. E não é que ele estava lá? Sentado à mesa, fumando um charuto tranquilamente, com as pernas estiradas em outra cadeira. Sorriu quando me viu. Na verdade sorriu quando viu a mala.

Só entre a gente, eu nunca gostei daquele filho da puta. Não por ser ladrão, afinal eu também sou, mas pela soberba. O mundo se acabando e o safado lá, pensando em dinheiro, me obrigando a correr no meio daquela confusão, eu podia ter morrido. Agi mesmo foi no instinto. Rodei a mala na cara do velho, ele caiu, chutei com a bota no rosto dele, ele desmaiou. Peguei uma escultura de bronze que tinha na mesa e esmaguei a cabeça dele.

Na moral, não precisa se assustar, ele mereceu. Depois subi no telhado. De lá dava pra ver o disco voador. É bonito demais, doido. Deve ter, o quê, uns 300m de diâmetro? O foda é que não dá pra chegar perto mesmo, pra olhar embaixo dele. Americanos filhos da puta tomaram conta da parada mesmo.

Ei, boy, tu já se perguntou por que essa porra de nave chegou aqui, tá esse tempo todo planando no ar e nunca nenhum alien saiu de lá? Eu tenho uma teoria, meu pirraia. Eu tenho pra mim, que não tem ninguém lá dentro. Mandaram pra cá como um teste, sei lá, reconhecer terreno.

Escreva o que eu estou dizendo, a invasão ainda está por vir. Qualquer dia desses vai aparecer um monte de naves como essa, só que vão chegar chegando e aí vai ser um Deus nos acuda de verdade. Até lá, vou gastando meus milhões. Que mais uma cerveja? Pode pedir, meu pirraia. É tudo por minha conta.

Publicado em Uncategorized | Marcado com , , , | 4 Comentários

Folke Filbyter

monstro

Mauro Rossiter

O frio era intenso, a neve profunda e a escuridão opressora. Naquela região pessoas normais não viviam. Apenas uma choupana se erguia no ermo gelado, exalando uma pequena fumaça de um buraco no teto. Folke morava sozinho ali. Era uma criatura medonha, corcunda, forte, careca e com orelhas levemente pontudas. Não fossem as sobrancelhas espessas poderiam dizer que ele tinha alopecia. Chamavam-no Filbyter, ou “aquele que castra cavalos com os dentes”. Havia participado de explorações e incursões com o povo viking, mas isso era passado. Vivia amargurado, com o peso de ter cometido atrocidades e desprezado o filho. Os dias se repetiam, todos iguais. Ele acordava cedo, comia o que houvesse e saía para caçar. Nem sempre voltava com alguma coisa. Cortava árvores com um único golpe de machado para fazer lenha e só. A vida um vazio sem sentido. Folke, que era filho de uma anã, havia gerado um filho com uma fêmea de troll. Depois de expulsá-los e do arrependimento pelo ato, não ouvira mais falar deles. Foi quando soube por alguém do vilarejo próximo que seu filho tinha se casado e gerado uma criança. O menino era órfão e não se sabia seu paradeiro. Filbyter então resolveu sair em busca da criança perdida. Montado em seu cavalo, iniciou a procura no norte da Escandinávia.

Na parte mais gelada da região, Folke gastou 19 dias apenas avistando neve e gelo. Nem sombra de vida dava a esperança de encontrar alguém naquele fim de mundo. Ele e a montaria se alimentavam das parcas provisões levadas consigo (o cavalo tinha mais sorte com a vegetação escassa que surgia por vezes). No vigésimo dia, ele percebeu uma movimentação perto a uma floresta de pinheiros. Correu com o cavalo e conseguiu ver o que era, mas sem acreditar no que enxergava. Quatro trolls gigantescos caminhavam tranquilamente por entre as árvores, porém sem fazer qualquer barulho. Dois deles tinham cerca de três metros de altura e não carregavam armas, apenas pedaços de alce para se alimentarem. Os dois restantes tinham aproximadamente quatro metros e levavam clavas nos ombros peludos. Eram criaturas horrendas, com narizes enormes e pontudos, dentes podres e olhos amarelados. O corcunda decidiu interrogá-los, uma vez que sabia seu idioma.

– Hej, criaturas da floresta! Me chamo Folke e procuro uma criança. O que têm para me dizer?

Um dos maiores respondeu:

– Criança humana? Humm. Faz tempo que não comemos uma, ser diminuto. Aliás, há algum tempo que não comemos carne humana. Você apareceu em hora certa!

Nesse momento, Folke tentou dar a volta e fugir cavalgando, mas o animal se assustara com a voz do monstro e empinou as patas dianteiras, levando-o ao chão. Não tinha alternativa a não ser enfrentar os trolls. O que havia respondido já agitava a clava e corria em direção a Folke, que sacou uma pequena faca do cinto e atirou com precisão no olho direito da criatura. Em agonia, o ser gigantesco deixou a clava cair e pôs as mãos no rosto. O segundo troll partiu para cima dele. Teve tempo apenas de se esgueirar por entre os pinheiros, evitando os golpes de clava. Numa oportunidade deixada pela criatura, Folke correu por trás do monstro com o machado nas mãos e cortou o tendão do pé esquerdo com um único golpe, fazendo o segundo cair gritando. Assim que o gigante ruiu, o Filbyter decepou sua cabeça, enquanto os dois trolls menores apenas olhavam horrorizados e sem ação. Correu até o primeiro gigante caído, ferido em um dos olhos, para usar novamente o machado ensanguentado. Depois olhou para os trolls restantes.

– E vocês? Querem o mesmo destino? Se não podem me dar a informação que preciso, deixem o alimento no chão e partam agora!

As criaturas não desobedeceram. Folke pegou os pedaços de alce e os arrastou até encontrar seu cavalo distante na neve. Tinha alimento para alguns dias, mas não estava feliz.

Após esse encontro infrutífero (exceto pela comida), o corcunda percorreu mais algumas paragens do extremo norte, contemplando auroras boreais na região da Lapônia, vislumbrando réstias de duendes por entre os arbustos, mas sem ter pistas do neto. Durante o percurso seu cavalo falecera, exaurido pelo esforço. Não morreu em vão; o alimentou por algum tempo. Decidiu, então, ir à costa para tentar um lugar em alguma embarcação que estivesse se dirigindo mais a leste, onde atualmente está a Rússia e os demais países europeus e asiáticos daquela área. Conseguiu se encaixar no navio “Stora Lejon”, ou Grande Leão, nau de madeira que trabalhava com pesca de baleias. Ele dissera ao capitão do barco que poderia ser útil no serviço enquanto durasse a travessia. E confirmou o que havia dito. No final da primeira semana, Folke fora o responsável por içar, sozinho, uma baleia de médio porte ao convés do navio. Os demais marinheiros demoraram a crer no que viam e alguns se afastavam fazendo orações e lançando pragas ao corcunda. Nada, porém, com o que ele já não fosse acostumado.

Ao cabo de dois meses no mar, a embarcação atracou na costa, numa cidade portuária onde hoje fica Tallinn, na Estônia. Folke teve uma certa dificuldade para iniciar a busca e conseguir informações, mas com um pouco de violência e ameaças definiu um trajeto para um possível paradeiro da criança. De onde estava, seguiu viagem sem grandes atropelos até alcançar um local que viria a ser chamado no futuro de São Petersburgo, percorrendo cerca de 360 km andando. A cidade era a maior que ele já havia visto, moderna e organizada. Por isso, todos o olhavam como se estivessem admirando uma criatura fantástica, de contos folclóricos. Folke havia juntado uma quantia de dinheiro enquanto trabalhava no navio baleeiro e pôde se instalar numa espécie de pensão nos arredores do município.

No dia seguinte continuou a investigar perguntando aos moradores do local sobre um menino de origem escandinava, dando os poucos detalhes que possuía. Naquela noite, um incêndio criminoso foi iniciado na pensão onde o corcunda estava instalado. Um ladrão ateou fogo próximo ao estábulo para, na confusão, roubar alguns cavalos. Como deu errado – o fogo tomou outra direção e atingiu a pensão – e não acharam o verdadeiro culpado, responsabilizaram Folke Filbyter, por ser estrangeiro e monstruoso. Na tentativa de se explicar e se defender ao mesmo tempo, matou quatro pessoas com as mãos e saiu correndo do local. Uma caçada pelas ruas da cidade foi organizada e várias pessoas procuravam pelo corcunda assassino. A essa altura, a notícia tinha se espalhado e todos que estavam no encalço de Folke queriam se tornar heróis. Quando ele entrou em um beco escuro, esbarrou com um jovem recém-saído da adolescência. Folke o olhou dentro dos olhos e sentiu que sua busca havia terminado. Era idêntico a seu filho abandonado e negligenciado. Tinha perdido a noção do tempo e achava que o neto ainda era uma criança. O jovem assustado ouvia gritos e algazarra nas ruas e identificou que o ser em seus braços era a maldita criatura assassina que estavam procurando. Sem dar espaço para qualquer reação, o jovem esfaqueou Folke uma, duas, oito vezes, antes de soltá-lo. Filbyter olhou novamente nos olhos do jovem, com lágrimas no rosto e disse “sou seu avô, pai do seu pai. Cometi muitos erros na vida e vim atrás de você para pedir perdão e me redimir com meu sangue”. O jovem ficou surpreso e não disse nada, as palavras não saíam de sua boca. Folke Filbyter o encarou pela última vez e sumiu de sua frente, fugindo para um local ermo e desconhecido.

Uma lenda escandinava diz que Folke Filbyter é visto em algumas noites escuras de inverno, enlouquecido, cavalgando um cavalo castrado com seus próprios dentes enquanto procura pelo neto desaparecido. Às vezes ele carrega crianças solitárias, pensando ser o filho de seu filho abandonado.

Publicado em Uncategorized | Marcado com , , | 2 Comentários

Quase toda sexta-feira

boteco

 

Na quarta ou quinta vez que o padre gritou “Sai desse corpo, que ele não te pertence”, eu perdi a paciência e aumentei o som. Na vitrola, Reginaldo Rossi pedia para alguém voltar logo, pois ele andava muito sofrido. Voltei ao balcão e pedi mais uma cerveja. Era sexta-feira. Na sexta-feira só tomo cerveja. Sábado é Whisky, e cachaça no domingo. Dia de semana não bebo.

Moacir entrou e perguntou “que barulheira era aquela”. “O padre está exorcizando a garçonete nova”, respondeu Lula detrás do balcão, enquanto abria a minha cerveja.

Margarete havia começado no serviço na noite anterior. Tudo correu muito bem, mas no segundo dia de trabalho ela começou a xingar, blasfemar, falar ao contrário, levitar e vomitar nos fregueses. Lula chamou o padre. Já fazia umas três horas que eles estavam lá no primeiro andar do bar e o demônio não saia.

Moacir sentou-se ao meu lado e pediu uma dose de Dreher.

– Essa barulheira não vai atrapalhar nossa negociação? – perguntou, preocupado.

– Acho que não – respondi, sem muita certeza.

Brenda Kauana entrou no bar, exatamente às 21h39. horário em que disse que chegaria. Nem um minuto a mais, nem um menos. Brenda, que na carteira de identidade carregava o não muito glamouroso nome de José Adalberto da Costa, chegou acompanhada de dois patifes. Um era conhecido como Jeferson Queixo de Tamanco. O outro era Tonhão Cabeça de Pica, também chamado de Minha Rola, ou Minha Chibata. Mas, para não complicar, fiquemos mesmo com Cabeça de Pica.

Os três sentaram-se na mesa mais afastada da porta, de costas para a parede, e ficaram nos esperando. Eu e Moacir nos levantamos.

– Som alto do caralho. Não tem como abaixar essa porra? – pediu Brenda, com uma delicadeza que lhe era peculiar.

Passei pela vitrola e diminuí o volume. Lá em cima, o padre gritava e a cama tremia. Os três olharam para o teto.

– E essa, agora? – perguntou Queixo de Tamanco.

– O produto – acabei de imediato com uma nova reclamação. – Trouxeram?

Brenda Kauana era só um travesti que fazia ponto na praça do Diário. Nunca se meteu com tráfico. Mas, um belo dia, um dos seus fregueses morreu de tanto cheirar no quarto do motel e a idiota não pensou duas vezes em pegar os 2kg de cocaína que ele deixou no banheiro e sair atrás de um comprador.  Isso tinha sido há dois dias.

Ela me ligou e combinamos um preço. Só que eu sabia de quem era o pó, então queria fazer negócio na moita. Mas, eis que a bicha me aparece com esses dois imbecis. Eu teria que dar um jeito neles depois.

Brenda Kauana abriu a bolsa e colocou o pacote sobre a mesa. 2kg da melhor qualidade. O lugar era limpeza, não baixava polícia no bar de Lula. Só ladrão, puta, frango e cachaceiro. Puxei o envelope do bolso e lhe entreguei. Ela contou o dinheiro, sorriu e fez sinal para que os dois imbecis que estavam com ela se levantassem.

Foi nesse exato momento que a porta e as janelas se fecharam e a luz apagou. Então, ouvi o som de quatro armas sendo engatilhadas. Nem dez segundos passaram-se e a energia retornou. Queixo de Tamanco e Cabeça de Pica tinham, cada um, um 38. Moacir empunhava o 22 que eu havia lhe dado de aniversário, nem lembro o ano.

Atrás do balcão, Lula estava com sua 12, mas não era para nós que ele apontava. Ele mirava para o teto. De repente, o padre desceu as escadas correndo. Estava branco e suando. “Salvem suas almas”, gritou.

A luz foi embora de novo e o tiroteio começou. Eu tinha uma 9 mm na cintura. Saquei a arma, me joguei no chão e atirei na direção das pernas dos três babacas que estavam na minha frente. Eu os ouvi gritar e continuei atirando até descarregar a pistola.

Quando a luz voltou, Moacir estava morto. No outro lado da mesa, apenas Queixo de Tamanco estava vivo. Fui até o balcão. Lula estava sentado no chão agarrado com a sua 12. Peguei a arma emprestada e voltei para acabar com o sofrimento de Queixo de Tamanco. Lula veio correndo em minha direção e parou ao meu lado.

– Olha a merda que esses putos fizeram – disse Lula apontando para debaixo de uma das mesas. O padre jazia em uma poça de sangue.

Não mais do que de repente, alguém bateu na porta. Apontei a 12 e perguntei quem era. Achei que a situação não podia piorar, mas era O Doutor quem havia chegado. Peguei o pacote de pó em cima da mesa, o envelope com dinheiro que estava caído no chão e pedi para Lula escondê-los embaixo do balcão. Também deixei a 12 e minha pistola sem balas com ele e então fui abrir a porta.

O Doutor entrou acompanhado de três capangas.

– Cadê o frango? – perguntou. Eu apontei para onde os três corpos estavam caídos. – Que bagunça, hein? Cadê o pó?

Não adiantava dizer que eu não sabia. O Doutor já sabia de tudo. Ele sempre sabia de tudo.

– Lá em cima – respondi. Ele me pegou pela gola da camisa e disse “você vai na frente”.

Seguimos eu, os três capangas e O Doutor pela escada de madeira. Abri a porta devagar, enquanto os quatro me esperavam. Deu pra ver Margarete em cima da cama, como um animal em posição de ataque. Como eu já tava na merda mesmo, escancarei a porta, corri e me atirei no chão. Pela sombra, vi quando ela voou por cima de mim. Quando eu me virei, a garçonete estava atracada com um dos capangas. Poucos segundos depois, ela quebrou seu pescoço. Deu pra ouvir o estalo, apesar dos gritos da moça.

Então ela partiu em busca dos outros e desapareceu escada abaixo. Só ouvi berros e tiros. Corri para a janela. Lula estava do lado de fora, com a 12 na mão. Desci por um cano que havia na parede ao lado e fui até ele. Os gritos e os tiros haviam parado.

– Fuderam meu bar – disse Lula.

Entramos com cuidado. Todas as mesas e cadeiras estavam quebradas. Um dos capangas estava com o corpo partido ao meio. O outro tinha a cabeça há uns cinco metros do tronco e O Doutor estava pendurado pela gravata no ventilador de teto. Margarete coberta de sangue e de olhos esbugalhados nos encarava.

– Vou descontar isso tudinho do seu salário – sacramentou o dono do bar.

Peguei minha pistola, o pacote de cocaína e o envelope de dinheiro. Dei metade da grana a Lula e fui embora. Ele saberia como limpar aquela bagunça. Quase toda sexta tinha uma merda daquele tipo. Quase toda sexta-feira.

 

Publicado em Uncategorized | 4 Comentários

A casa verde

casa abandonada editada

Não sei quem precisava mais de água: eu ou o carro. Passei por uma placa onde dizia “Você está entrando em Riacho Novo”, então acelerei sabendo que o posto de gasolina que eu procurava estava ficando perto. E estava mesmo. Menos de um quilômetro depois eu estava encostando o carro e pedindo para o frentista completar o tanque e colocar água no radiador. Em seguida, entrei na loja de conveniência e comprei uma garrafa de água mineral e um cartão telefônico.

Não havia ar condicionado na loja. A gordinha que me atendeu suava feito uma condenada. Do lado de fora estava um calor desgraçado, mas pelo menos estava ventando. Chamei o frentista e paguei pelo combustível. Ele acenou e me devolveu as chaves do carro.

Um menino bem magro andava de um lado para o outro, acompanhado de um cachorro vira-latas, e pedia esmola a todo mundo que passava. Quase todo mundo, quer dizer, porque de mim ele não chegou nem perto. Acho que teve medo, sei lá. Sempre me disseram que eu tinha cara de antipático.
Caminhei até o orelhão e fiz a primeira ligação do dia. A pessoa que atendeu não disse “alô”. Ficou calada esperando eu começar a falar.

– Sou eu.

– Eu sei que é você, Miguel. Não sou estúpido.

– Desculpe, senhor Freitas.

– Tudo bem, tudo bem – resmungou o velho. – Ainda bem que já está no posto. Você já chegou no posto, não foi?

– Sim, senhor.

– Ótimo. Faça o que tem que ser feito.

– Sim, senhor – falei, mas acho que ele desligou o telefone antes de me ouvir.

Dei os últimos goles em minha água mineral, voltei à loja de conveniência e comprei outra garrafa. O menino passou por mim, me olhou, mas não pediu dinheiro. Foi embora. O cachorro ficou zanzando pelo posto fuçando tudo que era lixo.

Voltei ao orelhão e fiz a segunda ligação do dia. Eram 11 da manhã quando Moura gritou “alô” do outro lado da linha. Parecia desesperado pelo meu telefonema.

– Estou no posto – falei.

– Finalmente – disse ele – Já estava preocupado.

– Você sabia que seria uma viagem longa.

– Como você está?

– Com calor – eu disse.

– Quero saber se está nervoso – e ele parecia mesmo preocupado.

– Não – e eu realmente não estava.

– Já falou com aquele filho da puta?

– Acabei de falar.

– Certo. Estou em uma pousada aqui no Centro. Se algo der errado, me ligue.

– Você está com a sua cópia do mapa? – perguntei.

– Claro. Agora, faça o que tem que ser feito. Boa sorte – e desligou o telefone.

“Faça o que tem que ser feito” era a ordem do dia. Porém, havia uma enorme diferença entre isso dito pelo Sr. Freitas e a mesma frase proferida por Moura.

Quando o Sr. Freitas disse “Faça o que tem que ser feito” ele queria que eu pegasse o carro e fosse até o lugar indicado por ele, uma cabana escondida no meio do mato, e resgatasse três capangas dele que haviam fugido da prisão, na noite anterior. Ele meu deu um mapa todo mal feito, que pensei que nunca iria conseguir decifrar.

Serviço rápido. Chegar à cabana, me apresentar de uma forma que não espantasse os sujeitos e transportá-los de forma segura para a cidade vizinha, onde eles teriam abrigo. Era minha primeira missão desde que eu tinha começado a fazer parte do círculo de capangas do Sr. Freitas. Isso fazia só um mês.

Já quando Moura disse “Faça o que tem que ser feito” significava: Conquiste a confiança do velho mafioso. Siga as ordens à risca e faça o serviço bem feito. Assim ele vai ficar satisfeito e nunca desconfiará que você é um policial disfarçado tentando juntar provas contra ele.

Até então, eu estava sendo um ótimo ator e havia convencido a bandidagem toda que fazia parte do esquema. E que esquema. Tráfico de drogas, prostituição e jogos eletrônicos ilegais.

As duas garrafas de água me deixaram com vontade de mijar. O banheiro era imundo e não havia sabonete nem toalhas. Não sei que milagre tinha água. Enxuguei as mãos na camisa e entrei no carro.

Segundo o mapa, eu teria que seguir pela interestadual por uns dois quilômetros após o posto e dobrar a esquerda, em uma estrada de barro. O ponto de referência era uma loja de artesanato que ficava logo na entrada.

Cheguei ao local indicado e dobrei a esquerda. A loja de artesanato era bem visível. Havia um monte de esculturas de barro. Patos, bois, galos e toda espécie de animais chamavam a atenção de qualquer um que passasse. Havia algumas carrancas também. Todas com as bocas abertas, mostrando os dentões e suas línguas imensas. Eu me lembro de ter pensado em comprar uma, quando estivesse voltando do serviço. Mas quando tudo terminou, eu havia esquecido completamente das carrancas.

Dirigi pela estrada de barro durante uma hora. Nos primeiros 30 minutos, de um lado e de outro, só mato seco. Havia pouquíssimas casas no caminho. Passei por dois ou três homens montados a cavalos. Depois a paisagem começou a ficar mais verde, mas não havia mais ninguém por perto. Os buracos também começaram a ficar maiores e havia grama crescendo pelo chão. Tive logo a impressão de que não passava um carro por ali há muito tempo.

A estrada terminava em uma mata. Não havia entrada, era mata fechada. Não me espantei, porque o Sr. Freitas havia me dito isso. Até mesmo porque se eu dependesse só das informações do mapa dele, estava fodido.
Coloquei uma jaqueta de couro, peguei a pistola e desci do carro. Um calor infernal e eu de jaqueta de couro. Mas era melhor ficar com calor do que me arranhar no meio do mato. Enfim, me enfiei no meio das plantas e segui caminhando com o maior cuidado possível.

Segundo a porra do mapa, há alguns metros dali havia uma trilha. Foi fácil achar o caminho. Era bem estreito, mas dava para caminhar sem muita dificuldade. Por causa das árvores, mesmo àquela hora do dia, estava um pouco escuro. Andei com a pistola nas mãos e olhando sempre para o chão. Sempre tive medo de cobras. Mas não vi cobra, nem pássaro, nem bicho nenhum. Alguns insetos faziam barulho e mais nada. A mata tinha um silêncio mórbido.

Após dez minutos, a trilha me levou até uma descida. Joguei a merda do mapa fora, pois já não precisava mais dele. Lá de cima eu já tinha avistado o casebre. Fiquei imaginando como aqueles três filhos da puta conseguiram chegar lá à noite e fugindo da polícia. Deviam estar todos arranhados e cansados pra caralho. Ou coisa pior.

Desci a pequena barreira e gritei. Gritei meu nome e o do Sr. Freitas. Ninguém respondeu. Cheguei mais perto e gritei de novo. Silêncio mais uma vez. Eu não queria chegar muito perto para não assustá-los, mas, como eles não davam sinal de vida, tive que caminhar até lá.

Reparei que a casa ficava numa espécie de “cratera”. Chamei pelos homens de novo e nada. Aparentemente eu estava nos fundos do casebre, então resolvi dar a volta. Notei que não havia janelas e as paredes eram de uma cor verde escuro. Parecido com lodo. O teto, meio arreado para a esquerda, parecia ser feito com palhas de coqueiro, mas também eram verdes. Uma casa tão antiga e desabitada deveria ter um telhado de palhas todo seco.

Quando cheguei à outra extremidade encontrei uma porta. Não havia fechadura nem trinca. Chamei de novo e nada. Já tinha quase certeza que não havia ninguém lá, então olhei por uma das frestas da porta.

Até onde minha visão alcançava, vi um deles. O cara estava sentado no chão, ao lado direito, encostado na parede e com as pernas esticadas. Chamei-o pela fresta. Ela sacudiu a cabeça como se tivesse acabado de acordar e virou-se lentamente em minha direção.

Falei meu nome e disse que estava ali a mando do Sr. Freitas. Ele arregalou os olhos e fez um sinal negativo com a cabeça. Não entendi aquela reação dele. Achei que ele estava ferido e resolvi entrar.

Forcei a porta, mas ela abriu facilmente. Vi os outros dois no outro lado do casebre. Um estava deitado de bruços e o outro estava sentado, também encostado na parede, mas com as pernas dobradas. Pareciam estar desacordados.

– Não – sussurrou o único consciente. – Eu disse para você não entrar.

Ouvi um barulho de madeira estalando e me virei. A porta da cabana estava se mexendo sozinha e todas as suas frestas se fechando. As palhas do telhado começaram a ser curvar e todas as entradas de luz se fecharam. Apontei a pistola para todos os lados, instintivamente, mas não sabia em que atirar. O interior do casebre ficou um pouco escuro. Apenas alguns raios de luz passavam por uma única fresta que havia ficado embaixo de onde havia a porta.

Olhei para o cara sentado no chão e ele estava chorando.

Caminhei até a entrada da casa e chutei a porta com toda minha força. Parecia que eu havia chutado um tronco de uma árvore, ao invés de um pedaço de madeira velha e podre. Caí sentado achando que tinha quebrado o pé.

– Não – gritou o cara sentado. – Saia do chão. Levante-se, rápido.

– Meu pé está doendo – argumentei.

– Levante – gritou de novo. Parecia desesperado.

Fiquei de pé novamente, mas não por causa do pedido do cara. Eu me levantei e fui até a porta, tentando abri-la de novo. Uma porta que havia se mexido como se estivesse viva. Procurei algum ponto onde a madeira estivesse solta e nada.

Eu me deitei e tentei passar a mão pela única fresta aberta. O cara lá trás gritou de novo para eu sair do chão. O espaço era muito pequeno. Levantei de novo e percorri todos os cantos do casebre atrás de um lugar que eu pudesse quebrar.

A casa era um cômodo só. E todas as partes da parede eram extremamente duras como a porta. Passei ao lado dos outros dois sujeitos e vi que havia uma poça de sangue e um pedaço de pano ao lado da cabeça daquele que estava deitado. O outro homem estava com os olhos fechados e a boca aberta. Nenhum dos dois respirava.

– Que merda aconteceu aqui? Que merda está acontecendo aqui? – perguntei.

– Foi a casa – respondeu ele. – A casa os matou e vai matar a gente.

– Qual o seu nome? – perguntei, me aproximando.

– João – seus olhos estavam com as pupilas dilatadas e sua boca ressecada.

– O que você quis dizer com “a casa os matou”?

– Minhas pernas – disse ele, olhando para baixo.

Olhei de perto e vi que escorria sangue das suas pernas.

– Você se cortou? – perguntei tocando em sua coxa direita.

Ele gemeu. A calça estava rasgada na parte de trás e a carne dele estava grudada ao chão. Um visgo verde saia do assoalho e envolvia a carne da sua perna. Na verdade todas as partes do seu corpo que estavam tocando no chão ou na parede da cabana estavam sendo corroída pelo visgo. Ergui-me assustado e enojado. Ele voltou a chorar.

Caminhei até os outros dois. O que estava sentado do outro lado estava em uma condição pior que a de João. Havia linhas verdes escuras espalhadas pelo seu corpo. O visgo estava dentro dele. As linhas se mexiam lentamente por baixo de sua pele. Mesmo sem muita luz, dava para ver.

O sujeito caído no chão apresentava um estado ainda mais lastimável. Seus braços estavam todos derretidos e mais da metade da sua cabeça havia sido engolida pelo fluido que brotava do assoalho.

Eu me abaixei e toquei no chão. Até então não havia percebido, mas todo o solo do casebre estava coberto por aquela espécie de piche. Olhei para João e ele me encarou. Depois olhei para a porta. Não havia mais porta. Tudo era apenas uma junção de quatro paredes.

– Preciso saber o que está acontecendo – falei.

A história que João me contou, entre uma tossida e outra, não esclareceu muita coisa sobre o que estava havendo naquela cabana. Mas eu não poderia exigir muito de um homem naquelas condições.

Os nomes dos outros dois eram Chico e Manoel. Eles escaparam por volta das 10 da noite quando um guarda, que havia sido subornado, facilitou a fuga. Assim como eu, eles também tinham um mapa. Perguntei onde estava, mas João me disse que havia jogado fora antes de entrar na casa.

Na fuga, Chico feriu-se em um galho de árvore e teve um corte fundo no rosto. Manoel rasgou uma parte de sua camisa e fez um curativo improvisado.

Depois de uma hora, eles encontraram o lugar. João disse que não viu direito, por causa da escuridão, mas acha que aconteceu a mesma coisa quando eles entraram. A casa se mexeu e os prendeu lá dentro. Tentaram por muito tempo achar uma saída, mas se cansaram e dormiram.

João disse que acordou e viu seus amigos imóveis. Quando tentou se levantar, notou que estava preso ao assoalho e à parede. Disse que ardia muito no início, mas agora não sentia mais nada. Linhas verdes apareceram em seu pescoço enquanto ele me contava essa história, mas não tive coragem de contar para ele.

Meus pés começaram a formigar. Achei que fosse cansaço, mas depois tive medo de que fosse algum efeito daquele líquido que cobria o chão. Aquilo era como uma espécie de ácido. Como se a casa fosse, sei lá, uma planta carnívora.

Chico era o que estava deitado. Sua cabeça já havia sumido em meio a um caldo marrom. Uma mistura de sangue e visgo. Tinha também um pó branco em algumas partes da poça. Não posso afirmar, mas pareceu ser os ossos dos crânios esfarelados.

O corpo de Manoel parecia estar sendo sugado para dentro da parede. Estava cada vez mais fino. Os dois já estavam começando a feder. Imaginei que logo João estaria assim.

– Como vocês chegaram aqui no escuro? – perguntei.

– Aqui. Meu bolso esquerdo. Esqueci de avisar.

Uma pequena lanterna. Acendi e passei a luz por dentro do cômodo. As paredes e o teto se mexiam lentamente. Não dava para sentir, nem ouvir. Mas dava para ver. Era um movimento bem devagar, mas era visível. As linhas verdes balançando de um lado para o outro. Às vezes se entrelaçavam. Aquele líquido pegajoso escorria pelas paredes.

Meus pés começaram a arder. Levantei a sola do pé esquerdo em minha direção e o iluminei com a lanterna. O solado dos meus sapatos havia derretido. Entrei em pânico. Tirei a camisa, joguei-a no chão e fiquei em cima dela. Estava acontecendo comigo. Eu estava sendo “digerido”

– João – gritei, iluminando seu rosto com a lanterna.

Os fios verdes estavam espalhados pelo seu rosto. A boca aberta e o corpo imóvel, igual ao seu parceiro. Era o fim para ele.

O medo de passar por aquele sofrimento tomou conta de mim de uma forma que eu nunca pensei que algum sentimento fosse me dominar.

Foi justamente nessa hora que a lanterna apagou. Sacolejei-a, mas não adiantou. Olhei o relógio. Quase 5 da tarde. O sol estava se ponto e o único feixe de luz que iluminava parcialmente o lugar havia sumido.

Saquei a pistola e disparei em direção ao local onde antes havia uma porta. Algumas balas entraram na madeira, mas não a ultrapassaram. Outras ricochetearam. Uma voltou e atingiu meu joelho esquerdo. Soltei a pistola e caí para trás me contorcendo de dor. Em 12 anos de profissão eu nunca havia tomado um tiro. E não poderia ter acontecido em pior hora. Gritei como nunca. Doía pra caralho.

Tentei me manter em pé, até consegui por alguns segundos, mas foi impossível aguentar mais. A vista escureceu e senti meu corpo caindo para trás. Apaguei antes de bater no chão.

Sonhei com rosto conhecidos. Todos cobertos com um líquido verde.

Acordei e tudo estava escuro. Meu corpo, assim como os dos outros três homens, estava grudado no chão. Meu joelho doía muito. Eu não sentia mais a perna.

Achei que não ia conseguir rastejar, mas consegui. Se bem que parte da pele das minhas costas e dos meus braços ficou colada no assoalho. Assim como o couro cabeludo da minha nuca.

Fui até onde estava a minha camisa. Era inútil vesti-la agora, então a deixei forrada no chão e me sentei em cima dela. Olhei para o relógio, mas não consegui ver que horas eram. Minha pistola estava ao lado. Trouxe-a para perto de mim. Estiquei a perna ferida, dobrei a outra e apoiei a cabeça no joelho bom. Mais uma vez apaguei.

O mundo era verde. Linhas verdes passavam pelo céu e se cruzavam por entre as nuvens. O sol era uma grande flor vermelha.

Ouvi o som de passos e acordei. Estava claro de novo. Todas as frestas estavam abertas de novo. A luz entrava pelo teto e pela porta. Sim, a porta estava lá de novo. E havia alguém por trás dela. Alguém que chamou meu nome. Eu não consegui responder ao Sr. Freitas. Minha boca estava seca e minha garganta doía.

Ele finalmente abriu a porta e sorriu quando nos viu.

– Eu fodi você, Miguel. Fodi você e esses três inúteis.

Não havia mais os outros corpos. Apenas uma mistura de panos e carne derretida. O cheiro era insuportável. Sr. Freitas estava parado, segurando uma bengala de madeira com as duas mãos.

– Pensou que não fosse descobrir? Tenho amigos na polícia.

Eu já estava completamente consciente, mesmo com a dor que estava sentindo.

– E esses três – ele usou a bengala para apontar um por um. – já me roubaram tantas vezes que nem saberia dizer quanto dinheiro me tomaram.

Arrastei a pistola para o meu lado.

– A minha casinha – disse o velho, olhando para cima. – Meu matadouro. Ela me livra dos inconvenientes sem deixar pistas.

Pelas minhas contas ainda restavam duas balas. Eu não poderia errar.

– Foi herança de família, sabia?

Um tiro certeiro. A bala partiu a bengala e acertou o saco do velho. Ele tombou para frente e caiu dentro da casa, mas suas pernas ficaram do lado de fora. A porta se mexeu, igual como fez comigo, mas não conseguiu se fechar. O corpo do velho a impedia. O safado gritou e tentou se levantar. Dei um tiro na cabeça e ele parou de se mexer.

Ouvi outros passou. Pensei que fosse um capanga do velho então apontei a arma para a porta.

Moura apareceu na entrada e eu abaixei a pistola. Ele fez menção de entrar e eu apontei a arma para ele de novo. Ele recuou espantado. Rastejei pelo assoalho. A porta não se mexia mais.

– Deixe eu te pegar – disse Moura, novamente tentando entrar na casa.

– Não, porra – gritei, de novo, com a arma em sua direção.

Dessa vez ele deu dois passos para trás e ficou observando meu sacrifício. Era como se a casa soubesse que eu estava escapando. O visgo estava ficando cada vez mais grosso e mais e mais escorria pelas paredes.

Enfim cheguei à saída. Passei por cima do corpo do velho e fiz sinal para que Moura, enfim, me ajudasse.

– Você não deu mais sinal de vida, então vim te procurar – falou afobado.

– Pegue o velho. Mas não entre na casa.

– Você apontou a arma para mim – queixou-se.

Deixei o pente vazio cair para ele ver que não havia mais balas. Moura puxou o corpo do Sr. Freitas pelas pernas. A porta se fechou com uma força incrível e a cabana não se mexeu mais.

Demorou meses para eu receber alta e meu joelho nunca mais foi o mesmo. Tive, inclusive, que me aposentar da polícia.

Abafamos a história, mas eu pensei naquela casa todos os dias em que estive internado. Tive sonhos terríveis. Por isso a primeira coisa que fiz quando recebi alta foi voltar lá.

Ela estava do mesmo jeito. Não abri a porta para ver se ela havia feito novas vítimas. Apenas despejei os galões de gasolina que havia levado e ateei fogo nela. Não sei o que era aquela cabana, mas uma coisa daquelas não poderia continuar viva.

Publicado em Uncategorized | Deixe um comentário

Piores Filmes de 2013

Agora minha lista de piores filmes de 2013, considerando o ano de lançamento nos respectivos países de origem e considerando também que eu não vi todos os filmes lançados esse ano. Rá de novo!

Piores Filmes de 2013

10 – The Complex

Image

Hideo Nakata, aquele mesmo de O Chamado, perdeu a mão nesse aqui. Chato de dar sono.

9 – Caça aos Gângsteres

Image

Um elenco do caralho para um roteiro de merda e cheio de clichês. Nem Sean Penn salvou.

8 – Guerra Mundial Z

Image

Filme de zumbi sem sangue entra na lista de piores automaticamente.

7 – Homem de Ferro 3

Image

Veio para comprovar que, em Hollywood, o povo sempre caga no fim da trilogia. E o que fizeram com o Mandarim, seus merdas????

6 – Machete Kills

Image

Filme totalmente desnecessário. História chata e Mel Gibson sendo o Mel Gibson da vida real.

5 – R.I.P.D. – Agentes do Além

Image

O castigo por imitar Homens de Preto foi ser um dos maiores fracassos do ano. Bem feito.

4 – Oz: Mágico e Poderoso

Image

Tenho nem palavras, até mesmo porque só vi 20 minutos e desisti.

3 – Mama

Image

De um curta de 3 minutos para um filme interminável de tão ruim.

2 – Sharknado

Image

Asylum se superando.

1 – Wolverine Imortal

Image

Depois de ver esse filme, descobri que meu saco tem fator de cura.

Publicado em Uncategorized | Deixe um comentário

Melhores Filmes de 2013

Segue minha lista de melhores filmes de 2013, considerando o ano de lançamento nos respectivos países de origem e considerando também que eu não vi todos os filmes lançados esse ano. Rá!

Melhores Filmes de 2013

10 – O Som ao Redor

Imagem

Filme pernambucano cabeça e supervalorizado, mas que esteve, e muito, acima da média das produções nacionais. Vale uma conferida, principalmente para quem mora em Pernambuco.

9 – Heróis de Ressaca

Imagem

Apesar do nome horroroso que a distribuidora escolheu para lança-lo no Brasil, o último capítulo da trilogia Cornetto é massa. A história, apesar de ser muito doida, emociona e diverte.

8 – A Maldição de Chucky

Ele está de volta e está melhor do que nunca. Palmas para o roteirista e diretor Don Mancici que conseguiu juntar todos os filmes para amarrar essa nova história.

7 – Universidade Monstros

O prequel de um dos melhores filmes da Pixar. Mike Wazowski e James Sullivan juntos na universidade. Não tinha como dar errado.

6 – Os Suspeitos

Imagem

Nos últimos anos, sempre desconfio de suspenses hollywoodianos, mas esse queimou a minha língua. Tem seus defeitos aqui e ali, mas o roteiro segura a onda.

5 – Mar Negro

Imagem

Esqueçam as tosquices dos filmes de terror nacionais. Mar Negro é uma obra prima. Rodrigo Aragão é o nome da fera que produziu, roteirizou, dirigiu e fabricou os 1.500 litros de sangue falso que jorram durante o longa. Foda.

4 – Kick Ass 2

Se no primeiro filme, o pau já cantava, agora a pancadaria é praticamente sem fim. Depois de ver esses super-heróis você vai achar os Vingadores um monte de donzelos.

3 – Círculo de Fogo

Monstros e robôs se estapeando pelas ruas das maiores cidades do planeta. Tava todo mundo tão doido pra ver isso que nem o roteiro furado atrapalhou. Salve Guillermo Del Toro.

2 – Em Transe

Danny Boyle em sua melhor forma. Um filme sobre hipnose como nunca se viu. E ainda tem tapa, tiro e Rosario Dawnson.

1 – CBGB

Imagem

O bar por onde passaram as maiores bandas de punk rock dos EUA. Um filme para quem é fã e para quem quer conhecer a história da música. Praticamente perfeito.

 

Publicado em Uncategorized | Deixe um comentário

A Dona da Mata

Image

Era dia de caçar na mata de Dois Irmãos. José e Pedro saíram logo cedo de casa, pouco tempo depois de o sol ter nascido. Os dois amigos, então com 15 anos cada, iam se aventurar sozinhos pela primeira vez naquele bosque. Isso tudo, sem o conhecimento e consentimento dos pais.

Pedro aproveitou que seu pai estava viajando ao interior, naquele final de semana, e pegou suas duas espingardas e suas bolsas de couro. José ficou esperando o amigo chegar, perto da entrada da mata. Era manhã cedo e não havia movimento naquelas bandas. Pedro não demorou a chegar. Como havia planejado tudo no dia anterior, foi só acordar pegar as coisas e sair ao encontro do seu comparsa.

Os dois nunca tinham ido caçar, mas já haviam aprendido a usar as espingardas atirando em passarinhos no quintal de casa. Mas na mata era proibido para eles. Muitas eram as histórias. De bandidos que roubavam as pessoas, de homens do saco que carregavam meninos, até causos de assombrações.

Enfim, quase nunca eles iam lá. Pelo menos não mata adentro. Mas vontade nunca faltou. Os dois sempre quiseram conhecer os segredos do bosque e nenhum dos dois tinha medo de qualquer história que já havia sido contada. Eles não eram mais crianças, diziam para sim mesmos.

Foram caminhando por dentro da mata sem parar um minuto. Chegaram até a beira do rio, onde havia várias pegadas de capivara. José analisou o rastro como se fosse um caçador experiente e viu para onde ele, supostamente, levava, pois nem ele tinha certeza de que sabia ler rastros de bichos. Mesmo assim, queria arriscar, e quando procurou o amigo, notou Pedro sentado ao pé de uma árvore.

Ele depositava no chão, um pouco de fumo de rolo.

– O que você está fazendo? – perguntou José.

– É um presente para a caboclinha. Para ela deixar a gente caçar e não nos bater.

– Isso é mentira, rapaz. Dizem isso para a gente não entrar na mata.

– Não é mentira. Meu pai faz isso toda vez que vem caçar. Ele sempre me disse. Minha mãe é quem vai na feira comprar o fumo. Agora, pegue isso – disse Pedro, tirando uma garrafa de aguardente de dentro da bolsa de couro.

– Isso é cana? – perguntou José.

– Sim. É seu presente. Coloque junto do fumo.

Apesar de José ser um bom amigo, Pedro não gostava de algumas atitudes dele. Por exemplo, ele sempre queria estar certo e ser mais esperto do que os outros. E naquele dia, ele teve mais uma de suas atitudes estúpidas. Ele destampou a garrafa, deu um gole na aguardente e sacudiu a garrafa dentro do rio.

Por conhecer o amigo, Pedro sabia que ele podia fazer alguma besteira, mas não algo tão sério como ofender a caboclinha. Ele não repreendeu o amigo em nenhum momento, apenas avisou:

– Você vai se arrepender.

José riu e disse que eles deveriam ir atrás das capivaras antes que os fantasmas as pegassem antes. Pedro contou que a caboclinha realmente existia. Essa história não era invenção. Falou que de vez em quando, os cavalos do velho Antonio apareciam com os cabelos e os pêlos do rabo todos trançados. E era obra da caboclinha. José apenas sorriu e disse, mais uma vez, que era bobagem.

Os dois seguiram para dentro da mata. Pedro ia na frente, mas José tomou a dianteira dizendo que ele é quem sabia onde estavam as capivaras. Pedro, mais uma vez, não disse nada e deixou o amigo fazer o que quisesse.

Em um determinado momento da jornada, os mosquitos começaram a atacar. José parou de repente e começou a coçar as canelas. Chamava um monte de palavrões e amaldiçoava os insetos. Depois de se coçar e espantar os mosquitos abanando as mãos, ele se ergueu de novo. Mas para a sua surpresa estava sozinho e a mata havia caído em um silêncio sepulcral. A única coisa que ele ouviu foi um assovio tão perto que parecia que alguém tinha soprado junto do seu ouvido.

O menino ficou apavorado. Olhava para todos os lados, chamava pelo amigo, mas não havia nem sinal dele. De repente alguém tocou em seu ombro e ele se virou, assustado.

– Pedro, tu tava onde, rapaz? – perguntou ele, quase chorando.

– Eu tava aqui. Tu que ficou rodando aí e gritando por mim feito doido. E eu aqui do teu lado.

– Tu não tava aí, não. Não tinha ninguém.

– Sabe o que é isso? Cachaça que tu bebeu – ironizou Pedro.

Mas ele sabia o que era de verdade e nada podia fazer para ajudar seu amigo. Continuaram a caminhar, só que dessa vez com Pedro na dianteira. Até mesmo por que José já estava com medo, apesar de não ter dado o braço a torcer, ainda.

Após alguns minutos, avistaram outro pedaço de terra que ficava a margem do rio.

– Ali Pedro, tás vendo?

Havia umas dez capivaras paradas na margem. Tentando fazer o mínimo de barulho possível, eles empunharam as espingardas e foram caminhando bem devagar em direção aos bichos. Pararam há uns cinco metros de distância. Como foram bem silenciosos e estavam escondidos atrás das plantas, as capivaras nem notaram a presença deles.

Mas quando fizeram mira e se preparam para atirar, os bichos partiram em disparada para dentro do rio.

– Que foi isso? – perguntou José, com raiva. – Como é que elas fugiram?

Não fizemos barulho nenhum. Você ouviu algum barulho?

– Vamos embora, José. A gente não vai conseguir caçar é nada hoje – disse

Pedro, desapontado, já pendurando a alça da espingarda no ombro.

– Embora nada. Dá pra atirar nelas, ainda.

– Elas já estão do outro lado do rio, José. Tá longe.

– Tá não, homem. Dá pra atirar. Minha mira é boa.

E então, José correu para a beira do rio. Pedro o acompanhou só para não contrariar, pois ele sabia que a caça já havia conseguido fugir.

José, agachado na beira do rio, tentava mirar nas capivaras que já estavam acomodadas do outro lado. Pareciam que estavam lá, zombando dos dois caçadores atrapalhados.

Pedro parou junto a José e ficou olhando para ele com uma cara de reprovação. Então, de repente, José se levantou e olhou para o amigo com uma cara desconfiada.

– Ouviu isso? – perguntou ele.

– O quê?

– Isso, Pedro – perguntou de novo.

– Isso o que, homem?

– Um assovio. O mesmo que eu ouvi antes, mas dessa vez tá bem distante.

Pedro começou a caminhar para longe do amigo. Ele conhecia as histórias. Já sabia o que ia acontecer e não queria estar perto dele.

– O que foi?

– Eu disse que tu ia se arrepender, Pedro. Eu disse.

Ela parecia uma menininha, usando um vestido branco e com longas tranças no cabelo que era comprido até sua cintura. Era assim que Pedro e José a descreveram quando contaram essa história para seus filhos e netos, anos depois. Mas eles contavam aquele causo, como uma brincadeira. Só para divertir, não assustar. Mas naquela manhã, na mata de Dois Irmãos, eles sentiram medo de verdade. Principalmente José.

A caboclinha surgiu de dentro da mata com um chicote feito de talos de urtiga. Primeiro ela passou correndo e rasgou a camisa do menino. Depois parou em sua frente e começou a gritar. Era uma língua estranha, nunca falada por homem nenhum em canto nenhum do mundo. Era a fala dos seres das florestas.

José tentou correr, mas levou um chute nas pernas e caiu de bruços. Foi aí que a surra começou. A caboclinha chicoteava o menino com uma rapidez assustadora. As cipoadas eram nas costas, nas pernas, nos braços. José só conseguia proteger mesmo, o rosto.

Seu amigo nada pôde fazer. A não ser assistir, abismado, a pisa que o amigo levava. Na hora, ele estava se pelando de medo, claro. Mas depois, pensando direitinho, bem que José mereceu a surra.

Depois que saciou a vontade de bater no menino malcriado que bebeu sua aguardente, a caboclinha sumiu mata adentro, tão rápido quanto apareceu. Restou a Pedro carregar de volta para casa o amigo espancado, duas espingardas, duas bolsas, e nenhuma caça para comer.

NDE: Esse conto foi escrito originalmente para o livro Malassombramentos: os arquivos secretos d’O Recife Assombrado. Porém, a versão que acabou publicada ficou bem diferente.

Publicado em Uncategorized | Marcado com , , | Deixe um comentário

O Boneco Ladrão

Image

1

Certidão de nascimento e carteira de identidade, ele não tinha. Se ele lembrava do seu nome verdadeiro, nunca havia dito a ninguém. Era “Cabeção” e pronto. Cabeção cachaceiro. Cabeção ladrão. Cabeção. Maloqueiro do sertão tem nome simples. Nome que todo mundo lembra.

Cabeção estava sentado em uma pedra, no início da estrada que levava ao centro da cidade de Cachoeira. Havia acabado de acender um cigarro de palha, depois de chupar uma manga. Foi nessa hora que uma carroça toda colorida dobrou na estrada. Era tanta coisa pendurada que o barulho podia ser ouvido à distância. Cabeção arregalou os olhos. Achou estranho aquele carro. Nunca tinha visto coisa assim por aquelas bandas. Ficou “cismado”, como se diz.

Era uma charrete toda fechada, só com um banco na frente onde ficava o sujeito que guiava a geringonça e o seu acompanhante. O condutor da carroça gritou e o cavalo parou ao lado da pedra.

– Dia quente – disse o senhor gordo e moreno que guiava o carro. – Já cheguei em Cachoeira da Pedra? – perguntou, enquanto passava um lenço em seu imenso bigode. O garoto negro que estava ao seu lado devia ter mais ou menos treze anos e tinha uma cara de enfezado.

– Já sim, senhor – respondeu Cabeção, sem olhar para o velho. Toda a sua atenção estava voltada para os penduricalhos da carroça. Havia panelas, chaleiras, sapatos velhos, roupas e até uma corneta.

– Gostou da carroça? – indagou o velho, percebendo a curiosidade do rapaz. Só então Cabeção olhou diretamente para o velho, mas não disse nada. – Indo por aqui direto, eu chego ao centro da cidade?

– Chega sim, senhor.

– Então, nos vemos mais tarde – acenou o velho.

A carroça seguiu fazendo zoada pela estrada e desapareceu na quebrada seguinte. Cabeção não era lá muito inteligente, mas de uma coisa ele sabia. Ali dentro daquela carroça devia ter alguma coisa para roubar.

2

A carroça colorida também chamou a atenção das pessoas da cidade. O povo da feira, os guardas da praça, as moças nas janelas. As crianças enlouqueceram. Uma verdadeira procissão de meninos e meninas seguiu o carro até a frente da prefeitura. O velho desceu distribuindo balas de hortelã para todo mundo e depois caminhou até o prédio. O garoto permaneceu na carroça.

– Posso ajudar? – perguntou o guarda que fazia a segurança.

– Preciso do alvará para montar meu show – respondeu o velho, lhe entregando uma bala de hortelã.

– Segunda porta a direita – informou o guarda.

Munido da autorização, o velho mandou o garoto chato distribuir panfletos pela cidade de cachoeira.

“Teatro de Bonecos do mestre Farid – O Auto do Roubo da Pedra Sagrada”

O velho dizia se chamar Farid, dizia que era libanês, mas na verdade era de Barbalha, Ceará. Naquelas terras era bom para os negócios dizer que era do estrangeiro. E do Líbano melhor ainda, que ninguém sabia onde ficava. Em pouco tempo, só se falava do show. Não acontecia muita coisa na cidade, por isso qualquer porcaria era motivo para o povo se barbear, se perfumar e sair de casa. A prefeitura havia dado autorização para que Farid fizesse seu show na praça e depois estacionasse sua carroça atrás da igreja. Para ele, estava ótimo. A praça era grande daria para todo mundo ver o show.

3

Cabeção foi até a casa do seu melhor amigo para convidá-lo a participar do roubo da carroça colorida. O nome do amigo era Ferrolho, apelido ganho devido a sua habilidade de arrombar cadeados, trancas, fechaduras e afins. Ferrolho estava dormindo quando Cabeção bateu na sua porta.

– Fala, macho – disse ele abrindo a porta, só de cueca e bocejando.

– Coloca a roupa. Chegou um velho na cidade cheio de coisa na carroça.

– E o que é que tem?

– Ora, o que é que tem… vamos lá roubar.

– Vou me vestir.

4

Após o almoço, o ajudante mal encarado do mestre Farid havia começado a montar o palco no meio da praça de Cachoeira. As crianças, que antes seguiram a carroça, estavam todas sentadas, observando a montagem do espetáculo. A cara de enfezado do garoto ajudava a ficarem quietas e comportadas. Acostumado ao trabalho, não demorou muito para que ele terminasse o serviço. Agora era só esperar o velho para enfeitar o palco e arrumar o cenário. E trazer os bonecos, claro.

5

O velho Farid estava na casa do prefeito tomando café e comendo bolo de rolo. Assim que soube que o mestre “libanês” estava na cidade, a autoridade máxima de Cachoeira havia mandado chamar aquele velho conhecido do seu pai para uma conversa.

– É um grande prazer receber um artista da sua grandeza em nossa pequena cidade – mentiu o prefeito.

– Muito obrigado, prefeito Cosme – agradeceu Farid. – Vejo que puxou a educação do seu saudoso pai.

O prefeito colocou sua xícara em cima da mesa e fez a pergunta que estava entalada na sua garganta desde que soube que o velho estava na cidade.

– Ele está aqui? – perguntou, sussurrando. – Ele ainda está com você?

Na primeira vez em que Farid esteve em Cachoeira, e isso fazia muito tempo, o pai de Cosme era o prefeito da cidade. Naquela ocasião, o mestre dos bonecos fez um serviço a mais do que seu habitual show. Um serviço especial para o pai do atual prefeito.

– Vá ao show hoje à noite e procure por um boneco branco de roupas pretas. Eu o uso para fazer o papel do ladrão. É ele. Ainda é – respondeu o velho, antes de tomar um gole do café.

– Eu quero comprá-lo – disse o prefeito, engolindo seco. – E eu pago bem.

– E como eu fico sem meu boneco ladrão? – perguntou o velho.

– Eu dou um jeito – responsabilizou-se o prefeito.

– Sou todo ouvidos – respondeu Farid.

6

Às 6 horas da noite, o palco já estava todo montado e os bonecos posicionados atrás da cortina. Agora era só esperar a missa terminar para o povo lotar a praça.

7

O Auto do roubo da Pedra Sagrada – Prólogo

Durante muitos e muitos anos, a pedra sagrada protegia a cidade. Por conta dela, nunca tinha seca. Os rios viviam sempre cheios e as plantações sempre verdes. O sol brilhava durante o dia a as estrelas apareciam todas as noites. Foi assim, sempre. Mas um dia, o dragão desceu a montanha e roubou a pedra sagrada que ficava em um altar no centro da cidade. O monstro levou a pedra e a escondeu no fundo da sua caverna. No dia seguinte, os rios secaram e as plantações viraram pó. O céu ficou cinza e os animais fugiram. A cidade estava morrendo.

8

Apenas o início do show de bonecos do mestre Farid foi o suficiente para deixar o público ensandecido. Os bonecos pareciam ter vida própria e tinham movimentos perfeitos. Alguns comentavam que não conseguiam ver os fios pelos quais o velho os manipulavam. O velho “libanês” também narrava a história com maestria.

E o dragão? Uma enorme marionete chinesa verde com os olhos vermelhos brilhantes. O dragão sempre era o preferido da platéia. Essa era a melhor hora para arrecadar a bilheteria da noite. Enquanto os espectadores estavam embasbacados, o assistente de Farid corria por entre eles com a sacolinha. Todo mundo fazia questão de contribuir com um espetáculo tão bonito e bem feito. Cabeção e Ferrolho, mesmo pensando no golpe que iriam dar, haviam se impressionado com o auto. Não tinha entendido nada da história, mas também tinham gostado do “jacaré” dos olhos vermelhos. Se bem que os dois se animaram mais quando viram a sacola do menino cheia de moedas e notas. Até mesmo o prefeito Cosme estava encantado com o espetáculo. Mas o que ele esperava mesmo era ver o boneco ladrão.

9

O Auto do roubo da Pedra Sagrada – 1º ATO

Desesperados, os moradores só podiam recorrer a uma pessoa para recuperar a pedra sagrada. Alguém que havia sido banido da cidade há muito tempo. Há tanto tempo que ninguém mais lembrava seu nome, nem o porquê dele ter sido expulso daquele lugar. Alguém de quem o povo se referia apenas como “O Ladrão” e que morava perto da lagoa. Uma comitiva foi montada e seguiu pela estrada. Não demorou muito para que eles chegassem à casa de Ladrão.

– O que vocês querem? – perguntou ele assustado, assim que a comitiva chegou. Ele usava roupas pretas e era muito branco.

O líder do povo da cidade explicou o que havia acontecido e que precisava de um “ladrão” para recuperar a pedra sagrada. O Ladrão disse que resgataria a pedra, mas fez muitas exigências: dinheiro, comida, cavalos e voltar a morar na cidade. Os homens da comitiva recearam no início, mas depois de uma conversa entre eles, viram que não tinham opção. Um acordo foi selado e Ladrão partiu rumo à montanha.

10

O prefeito Cosme nem acompanhava mais a história. Toda sua atenção estava voltada para o Boneco Ladrão.

11

O Auto do roubo da Pedra Sagrada – 2º ATO

O povo da cidade mandou dois homens acompanhando Ladrão. O objetivo era que eles ajudassem, mas estavam era morrendo de medo do dragão. Ladrão, por outro lado, não demonstrava temer nenhum desafio que lhe surgisse. Escalava a montanha usando as suas próprias mãos, enquanto que os homens cheios de cordas e picaretas ficavam para trás.

Depois de algumas horas de subida, eles pararam em frente à caverna do bicho. Os dois homens da cidade estavam exaustos e pediram para descansar um pouco antes de encararem a fera, mas Ladrão não lhes deu ouvidos e entrou na toca do monstro, sozinho. Apenas ele e sua espada.

12

O segundo intervalo era a hora do assistente de Farid vender as guloseimas. E tome algodão doce, pipoca e pirulito de tábua. Atrás das cortinas, o velho mestre preparava o cenário e os bonecos para o próximo ato. Nessa hora, alguém bateu na carroça. Farid abriu a porta, meio desconfiado. O prefeito Cosme estava lá, parado.

– O que você quer? – perguntou o velho, enfezado.

– Eu quero vê-lo de perto. Quero vê-lo agora.

– Espere o fim do show. Suma daqui ou vou esquecer que um dia fui amigo do seu pai – gritou o dono do show e fechou a porta.

13

Ferrolho havia comprado um pacote de pipoca e ofereceu a Cabeção.

– A gente veio aqui pra roubar e não pra comer – disse ele, negando a pipoca.

– Quando a gente roubar o dinheiro deles, vou estar pegando meu dinheiro de volta – sorriu Ferrolho.

– Eita. É mesmo – concordou Cabeção, enfiando a mão no saco de papel.

14

O Auto do roubo da Pedra Sagrada – ATO FINAL

Os homens que estavam fora da caverna acenderam tochas e ficaram esperando. Havia um silêncio absurdamente estranho. Mas, de repente, uma labareda de fogo iluminou toda a entrada da caverna. Os homens recuaram assustados. Foi nessa hora que Ladrão apareceu trazendo a pedra sagrada nas mãos.

– Tome – disse ele entregando a pedra a um dos homens – leve-a para a cidade. Vou cuidar do dragão.

Os homens desceram correndo até a cidade para colocar a pedra de volta ao altar. Mas antes que o povo começasse a comemorar, o dragão surgiu no céu. E então ele pousou ao lado da pedra. Sua boca e olhos eram vermelhos e saía fumaça das suas narinas. Todos achavam que seriam incendiados ali mesmo. Mas o dragão, segundos antes de cuspir suas chamas, deitou no chão se contorcendo de dor. Foi aí que uma espada surgiu, de dentro para fora, rasgando a barriga do monstro. Ladrão surgiu todo sujo de sangue de dentro da fera. A cidade estava para sempre. Todos aplaudiram o herói.

Fecharam-se as cortinas.

15

Fim do espetáculo. História simples para todo mundo entender. O público aplaudiu de pé. Estavam encantados com os bonecos do mestre Farid. Tanto com a história como com a perfeição dos movimentos.

16

O prefeito Cosme se despediu das pessoas na praça e saiu em direção à sua casa. Seu plano já estava armado. Agora era só esperar o velho levar o boneco ladrão para ele.

17

Algumas pessoas fizeram questão de cumprimentar o velho Farid após o show. Ele distribuía sorrisos e apertos de mãos, mas não prometeu fazer um novo espetáculo no dia seguinte. Disse que iria ver. Logo em seguida, acompanhado do menino mal encarado, ele desmontou o palco, juntou tudo em sua carroça e partiu para seu merecido descanso.

18

Cabeção e Ferrolho seguiram a carroça do velho libanês até à igreja. Era costume do povo de Cachoeira dormir cedo, então todo mundo havia se recolhido naquela hora. Farid estacionou a carroça por trás da Igreja e desceu com uma mala na mão. Pelo caminho que tomou, os dois ladrões acharam que o velho havia seguido à pensão para dormir.

– A hora é essa – disse Cabeção.

– Calma – falou Ferrolho, segurando o amigo pelo braço. – Cadê o moleque? O da cara feia? Ele deve ter ficado na carroça.

Mas assim que Ferrolho disse isso, o moleque pulou da carroça e correu na mesma direção do velho, também com uma mala na mão.

– Pronto – emendou Cabeção. – Agora a barra tá limpa.

– Eu estava pensando – disse Ferrolho. – Eu acho que eles não deixam o dinheiro na carroça. Devem levar com eles.

– Bem capaz… mas deve ter algo que preste na carroça. Não custa olhar, homem de Deus. Vai desistir, é? – desafiou Cabeção.

– E a guarda municipal? Pode passar um guarda por aqui – continuou Ferrolho.

– Ah, já vi que vai amolecer. Pois eu vou sozinho, duvida? – perguntou Cabeção.

Ferrolho olhou para os lados e suspirou.

19

Uma população inteira de bonecos testemunhava a invasão. Bonecos de todos os tipos e tamanhos. Pendurado no teto estava o dragão. Um artefato chinês muito bem feito e imponente. Bonecas russas de porcelana com seus rostos brancos e seus vestidos coloridos. Bonecos simples de pano, mas costurado com técnicas apuradas e perfeccionistas. Havia um mundo dentro da carroça de Farid. Um mundo de bonecos.

O invasor remexia as caixas no chão, sem saber que aqueles olhos de vidros os observavam. Procurava o que quer que fosse, com pressa. Queria sair dali o mais rápido possível. De tão entretido que estava, não viu a movimentação nas paredes.

Pequenas coisas feitas de pano e bucha escorregavam como aranhas em teias e corriam para o escuro assim que alcançavam o chão. Cada um empunhava uma agulha com linha, como se fossem pequenas espadas.

O invasor achou uma caixa grande e estava revirando as coisas que tinha dentro. Foi quando sentiu os primeiros ataques. Em poucos segundos seu pé esquerdo estava cheio de agulhas. Ele gritou, mas não por muito tempo. Outros bonecos, dezenas, atacaram seu rosto. Alguns cravaram agulhas em sua língua e ele não conseguiu gritar mais. Então, ele caiu de costas no chão e se transformou em uma presa fácil. Agarraram suas pernas e braços. Pequenas mãos, porém fortes, como as de guerreiros. A linha era resistente como um cabo de aço. Ele não conseguia se mexer.

O dragão desceu do teto planando e pousou em seu peito. Seu bafo e as faíscas que saíam do seu nariz eram reais. Assim como os grandes olhos vermelho. Agora era o medo que não deixava o invasor esboçar reação.

A porta da carroça se abriu e Farid entrou na carruagem. O velho tirou um funil do bolso do paletó e, ajoelhando-se, o entregou a um boneco de 30 cm que usava calças xadrez e camisa de flanela.

– Retire as agulhas e enfie isso na boca dele – ordenou à pequena figura.

O dragão levantou vôo e voltou para o teto. Então, o boneco pulou sobre o peito do homem e caminhou até sua boca. O preso tentava falar algumas palavras, enquanto as agulhas eram arrancadas de sua língua e dos seus lábios, mas não conseguia dizer nada. Assim que terminou de tirar as agulhas, o boneco colocou o funil na boca do homem. Empurrou bem fundo, de modo que ele não cuspisse.

Farid pegou um pequeno frasco, agora tirado do bolso da calça, e derramou o líquido no funil. O homem engasgou um pouco, mas engoliu tudo sem reagir. Pouco tempo depois, seus olhos estavam completamente brancos.

– Sempre são os olhos que mudam primeiro – falou Farid, discursando para seu público de marionetes – Nunca entendi, por que – confessou, enquanto se levantava.

Os bonecos começaram a voltar para suas posições de origem. Farid chamou seu assistente, que esperava do lado de fora da carroça. O garoto entrou correndo e começou a despir o homem. Assim que terminou, o rapaz puxou uma faca e abriu um enorme corte na barriga do invasor. O corpo nu começou a encolher. Sua pele empalideceu e amoleceu, seu cabelo engrossou e o sangue escorregou todo para fora do corpo em uma velocidade incrível, como se estivesse sendo drenado.

No fim, Farid caminhou pela poça de sangue e pegou em suas mãos a pequena figura que havia sido um homem, poucos minutos atrás. Havia um novo boneco dentro da carroça.

– Agora é só lavar e costurar, e meu novo boneco ladrão estará novo em folha – disse o velho.

Alguns passos foram ouvidos do lado de fora. Farid e seu assistente correram para olhar, mas não viram nada nem ninguém. Os dois arrumaram suas coisas e partiram com a carroça colorida, deixando a cidade de Cachoeira para trás.

20

Sentado na poltrona da sua sala de estar, o prefeito Cosme observava o boneco que havia acabado de comprar. Ele cresceu ouvindo falar dele, mas seu nome verdadeiro era proibido de ser pronunciado naquela casa. Era uma afronta à memória do seu pai.

Farid fez um bom serviço para o pai de Cosme, transformando seu maior inimigo em um boneco. Não havia um corpo que precisasse ser ocultado. Era o crime perfeito.

A marionete estava inerte, deitada em cima de uma pequena mesa. Cosme falava, mas ele não respondia. Só obedecia ao comando do velho Farid e de mais ninguém.

Mas não foi para fazê-lo se mexer que o prefeito havia pago, nem mandado o segurança da prefeitura invadir a carroça do velho bruxo, indo de encontro à morte certa. “Entre na carroça e procure por uma caixa. Você será recompensado”, mentiu o prefeito para o guarda.

O prefeito Cosme queria tomar parte na vingança de seu pai. Ele se levantou e foi até a cozinha. Quando voltou, trazia uma garrafa de álcool e uma caixa de fósforos em suas mãos.

21

Depois de desistir de roubar a carroça, Ferrolho foi para a casa. Quando estava quase pegando no sono, ouviu alguém bater desesperadamente na porta do seu barraco. Quando abriu, deu de cara com cabeção. Ele estava pálido e esbaforido.

– Ferrolho… quase que eu virou boneco – confessou, antes de desmaiar.

 

Publicado em Uncategorized | Marcado com | 1 Comentário

LIVRO: O OCEANO NO FIM DO CAMINHO (2013)

LIVRO: O OCEANO NO FIM DO CAMINHO (2013).

Publicado em Uncategorized | Deixe um comentário